Livro: O Mulato
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Autor - Fonte: Aluísio Azevedo
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Aluísio Azevedo
CAPÍTULO I
Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão
parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras
escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes,
as paredes tinham reverberações de prata polida as folhas das árvores nem se
mexiam as carroças de água passavam ruidosamente a todo o instante, abalando os
prédios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam
sem cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não
se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos
faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho.
A Praça da Alegria apresentava um ar fúnebre. De um casebre miserável, de
porta e janela, ouviam-se gemer os armadores enferrujados de uma rede e uma voz
tísica e aflautada de mulher, cantar em falsete a “gentil Carolina era bela”, doutro
lado da praça, uma preta velha, vergada por imenso tabuleiro de madeira, sujo,
seboso, cheio de sangue e coberto por uma nuvem de moscas, apregoava em tom
muito arrastado e melancólico: “Fígado, rins e coração!\'\' Era uma vendedora de fatos
de boi. As crianças nuas, com as perninhas tortas pelo costume de cavalgar as
ilhargas maternas, as cabeças avermelhadas pelo sol, a pele crestada os
ventrezinhos amarelentos e crescidos, corriam e guinchavam, empinando papagaios
de papel. Um ou outro branco, levado pela necessidade de sair, atravessava a rua,
suado vermelho afogueado, à sombra de um enorme chapéu-de-sol. Os cães,
estendidos pelas calcadas, tinham uivos que pareciam gemidos humanos,
movimentos irascíveis, mordiam o ar querendo morder os mosquitos. Ao longe, para
as bandas de São Pantaleão, ouvia-se apregoar: “Arroz de Veneza! Mangas!
Macajubas!” Às esquinas, nas quitandas vazias, fermentava um cheiro acre de
sabão da terra e aguardente. O quitandeiro, assentado
...
sobre o balcão, cochilava a
sua preguiça morrinhenta, acariciando o seu imenso e espalmado pé descalço. Da,
Praia de Santo Antônio enchiam toda a cidade os sons invariáveis e monótonos de
uma buzina, anunciando que os pescadores chegavam do mar; para lá convergiam,
apressadas e cheias de interesse, as peixeiras, quase todas negras, muito gordas, o
tabuleiro na cabeça, rebolando os grossos quadris trêmulos e as tetas opulentas.
A Praia Grande e a Rua da Estrela contrastavam todavia com o resto da
cidade, porque era aquela hora justamente a de maior movimento comercial. Em
todas as direções cruzavam-se homens esbofados e rubros cruzavam-se os negros
no carreto e os caixeiros que estavam em serviço na rua; avultavam os
paletós-sacos, de brim pardo, mosqueados nas espáduas e nos sovacos por
grandes manchas de suor. Os corretores de escravos examinavam à plena luz do
sol, os negros e moleques que ali estavam para ser vendidos; revistavam-lhes os
dentes, os pés e as virilhas; faziam-lhes perguntas sobre perguntas; batiam-lhes
com a biqueira do chapéu nos ombros e nas coxas, experimentando-lhes o vigor da
musculatura como se estivessem a comprar cavalos. Na Casa da Praça, debaixo
das amendoeiras, nas portadas dos armazéns, entre pilhas de caixões de cebolas e
batatas portuguesas discutiam-se o câmbio, o prego do algodão, a taxa do açúcar, a
tarifa dos gêneros nacionais; volumosos comendadores resolviam negócios, faziam
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transações perdiam, ganhavam tratavam de embarrilar uns aos outros, com muita
manha de gente de negócios falando numa gíria só deles trocando chalaças
pesadas, mas em plena confiança de amizade Os leiloeiros cantavam em voz alta o
preço das mercadorias, com um abrimento afetado de vogais; diziam: “Mal-rais” em
vez de mil-réis. À porta dos leilões aglomeravam-se os que queriam comprar e os
simples curiosos. Corria um quente e grosseiro zunzum de feira.
O leiloeiro tinha ...
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