Livro: A Dança dos Ossos Página 2
Autor - Fonte: Bernardo Guimarães
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aindo de um casebre vizinho, uma menina de oito a
dez anos, fusca e bronzeada, quase nua, bocejando e esfregando os olhos; mas que
me mostrava ser uma criaturinha esperta e viva como uma capivara.
— Então, senhorinha, como é que tu vais-me dizer que hoje era sextafeira?.
ah! cachorrinha! deixa-te estar, que amanhã tu me pagas. então hoje que
dia é?.
— Eu também não sei, papai, foi a mamãe que me mandou que falasse que
hoje era sexta.
— É o que tua mãe sabe ensinar-te; é a mentir!. deixa, que vocês outra vez
não me enganam mais. Sai daqui: vai-te embora dormir, velhaquinha!
Depois que a menina, assim enxotada, se retirou, lançando um olhar
cobiçoso sobre umas espigas de milho verde que os caboclos estavam a assar, o
velho continuou:
— Veja o que são artes de mulher! A minha velha é muito ciumenta, e
inventa todos os modos de não me deixar um passo fora daqui. Agora não me resta
um só anzol com linha, o último lá se foi esta noite, na boca de um dourado; e, por
culpa dessa gente, não tenho maneiras de ir matar um peixe para meu amo almoçar
a amanhã!.
— Não te dê isso cuidado, Cirino; mas conta-me que te importava que hoje
fosse sexta ou sábado, para ires ao campo buscar as tuas linhas?.
— O quê!. meu amo? Eu atravessar o caminho dessa mata em dia de
sexta-feira?!. é mais fácil eu descer por esse rio abaixo em uma canoa sem remo!.
não era à toa que eu estava perguntando se não lhe aconteceu nada no caminho.
— Mas o que há nesse caminho?. conta-me, eu não vi nada.
— Vm. não viu, daqui a obra de três quartos de légua, à mão direita de quem
vem, um meio claro na beirada do caminho, e uma cova meio aberta com uma cruz
de pau?
— Não reparei; mas sei que há por aí uma sepultura de que se contam
muitas histórias.
— Pois muito bem! Aí nessa cova é que foi enterrado o defunto Joaquim
Paulista. Mas é a alma dele só que mora aí: o corpo mesmo, esse anda espatifado
aí por essas ma
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as, que ninguém mais sabe dele.
— Ora valha-te Deus, Cirino! Não te posso entender. Até aqui eu acreditava
que, quando se morre, o corpo vai para a sepultura, e a alma para o céu, ou para o
inferno, conforme as suas boas ou más obras. Mas, com o teu defunto, vejo agora,
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pela primeira vez, que se trocaram os papéis: a alma fica enterrada e o corpo vai
passear.
— Vm. não quer acreditar!. pois é coisa sabida aqui, em toda esta
redondeza, que os ossos de Joaquim paulista não estão dentro dessa cova e que só
vão lá nas sextas-feiras para assombrar os viventes; e desgraçado daquele que
passar aí em noite de sexta-feira!.
— Que acontece?.
— Aconteceu o que já me aconteceu, como vou lhe contar.
CAPÍTULO II
Um dia, há de haver coisa de dez anos, eu tinha ido ao campo, à casa de
um meu compadre que nora da aqui a três léguas.
Era uma sexta-feira, ainda me lembro, como se fosse hoje.
Quando montei no meu burro para vir-me embora, já o sol estava baixinho;
quando cheguei na mata, já estava escuro; fazia um luar manhoso, que ainda
atrapalhava mais a vista da gente.
Já eu ia entrando na mata, quando me lembrei que era sexta-feira. Meu
coração deu uma pancada e a modo que estava me pedindo que não fosse para
diante. Mas fiquei com vergonha de voltar. Pois um homem, já de idade como eu,
que desde criança estou acostumado a varar por esses matos a toda hora do dia ou
da noite, hei de agora ter medo? De quê?
Encomendei-me de todo o coração à Nossa Senhora da Abadia, tomei um
bom trago na guampa que trazia sortida na garupa, joguei uma masca de fumo na
boca, e toquei o burro para diante. Fui andando, mas sempre cismado; todas as
histórias que eu tinha ouvido contar da cova de Joaquim Paulista estavam-se-me
representando na idéia: e ainda, por meus pecados, o diabo do burro não sei o que
tinha nas tripas que estava a refugar e a passarinhar numa toada.
Mas, a poder de esporas, sempre vim va ...
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