Livro: Vida em leilão Página 2

... . Quando o carro desapareceu de vista, engolido pelo tráfego intenso, controlou as batidas descompassadas de seu coração. Podia, sim, ajustar-se a uma nova vida, a uma nova identidade. Mas duvidava seriamente que pudesse esquecer o sobressalto constante, o eterno cuidado. Especialmente nessa época do ano, quando os dias eram mais curtos e o crepúsculo chegava mais cedo. Inconscientemente, apertou o passo. Venceu mais dois quarteirões, antes de dobrar à direita e seguir na direção do rio. Seu apartamento ficava a uns cinco minutos dali, quando muito. Mas era esse o trecho que mais temia. As ruas eram mais estreitas ali, e menos freqüentadas. E o nevoeiro, agora mais cerrado, não permitia ver muita coisa, à luz fosca das lâmpadas elétricas que brilhavam por entre as árvores. Havia um sem-número de portões em penumbra e de becos escuros. E ali dentro, dissimulado na sombra, o assassino poderia estar de tocaia. "Não há nada a temer, nada a temer, nada a temer." Repetiu mentalmente a monótona ladainha, como havia feito centenas de vezes nos últimos meses, acompanhando a rima com o passo. Talvez devesse usar seu carro, como Sam lhe sugerira. Mas haveria o problema do estacionamento no final do dia. Além do mais, gostava de andar a pé. A caminhada lhe fazia bem. Aspirou fundo o revigorante ar de outono, mas prendeu-o convulsivamente, quando um vulto apareceu inesperadamente diante dela. Ao reconhecer o pesquisador que trabalhava no laboratório do hospital, quase riu de alívio. "Ele está no horário", pensou, calculando mentalmente o tempo. Costumava encontrá-lo sempre que saía da escola às cinco e meia, o que acontecia uma ou duas vezes por semana. Isso era uma das coisas que Sam Loomis lhe ensinara: mudar constantemente de itinerário, evitar a rotina para não correr o risco de tornar-se um alvo fácil. Não que ela fosse uma pessoa de hábitos rotineiros. Fora até muito impulsiva no passado quando, guiada por seus demônios interiore ...

, quisera afirmar-se como jornalista. Agora, no entanto, como professora de Inglês de uma escola de segundo grau, acostumara-se a uma vida calma e regular. "Estranho como tudo mudou.", refletiu novamente, perscrutando cada rosto que passava. Sam ensinara-a a observar cuidadosamente não apenas os seus vizinhos, mas também as pessoas com que cruzavam habitualmente pelas ruas, durante as primeiras semanas em que passara a seu lado, acompanhando-a à escola pela manhã e de volta ao apartamento, à tarde. Consideradas as circunstâncias, Sam fora um enviado dos deuses. Agora, no entanto, podia contar apenas consigo mesma; sua imaginação estava livre para conceber todas as coisas horríveis que poderiam lhe acontecer naquela rua escura e deserta. Mas não era realmente deserta. Havia grupos de casas de um lado e lojas do outro, e carros encostados junto ao meio-fio de ambas as calçadas, numa evidência de que havia também gente por perto. Se estivesse em perigo, teria apenas que gritar. Mas alguém teria tido tempo de correr em seu socorro? As luzes brilhavam, mas as casas estavam trancadas. E as lojas, ocultas nas sombras das arcadas, começavam a fechar as portas. Quando o Memorial Drive surgiu, pardacento sob a bruma prateada, Carla alegrou-se um pouco. Mais alguns minutos e estaria em casa. Então, inesperadamente, ouviu o som inconfundível de passos compassados atrás dela. Sem pensar nos saltos altos, na calçada irregular ou na bolsa cheia de livros que lhe batia pesadamente no flanco esquerdo, pôs-se a correr. Precipitou-se para a frente com uma única idéia na cabeça: fugir dali o mais rápido possível. Um tremor lhe subia pelas pernas, mas conseguiu dominá-lo. Dobrou a esquina deserta e, ao avistar a entrada de pedra de seu edifício, ousou lançar um olhar por cima do ombro. Entreviu o vulto de um corredor desaparecer atrás das sombras vacilantes das árvores e, quase no mesmo instante, colidiu com uma firme parede de músculos à sua fre ...

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