Livro: As minas de prata Página 2
Autor - Fonte: José de Alencar
...
benefícios do novo governo.
O programa do festejo primava pela variedade e boa escolha. Depois da missa cantada,
seguida de Te Deum, havia alardo da gente de guerra e companhias de ordenanças em
frente aos paços; à tarde devia correr-se no Terreiro do Colégio uma luzida cavalhada
com a qual se dariam jogos, torneios e alcanzias; à noite danças pelas ruas e arcos de
luminárias concertados com palmeiras ou festões de flores na Praça do Governador.
Não era preciso tanto para excitar a imaginação viva da mocidade baiana e fazer girar
como corrupios todas as comadres devotas e mexeriqueiras, de que a metrópole
brasileira já naquele tempo estava abundantemente provida.
A Bahia não passava então de uma pequena cidade habitada por cerca de mil e
quinhentas almas; mas seus vizinhos eram abastados e gostavam do luxo; havia muitos
colonos ricos de fazendas de raiz, peças de prata e ouro, jaezes de cavalo e alfaias de
casa; alguns tinham o melhor de cinco mil cruzados de renda, e diz Gabriel Soares,
“tratavam suas pessoas mui honradamente com muitos cavalos, criados e escravos”.
Esses cabedais que atualmente parecem mesquinhos, eram naquele tempo avultados; a
facilidade com que se adquiriam e o gênio natural da população inclinada ao fausto e
prodigalidade alimentavam na Bahia e Pernambuco um luxo superior ao de Lisboa, e
entretinham o gosto pelas festas e divertimentos.
Não há pois admirar se a Capital do Brasil despertou quinta-feira, 1.º de janeiro de 1609,
possuída do alvoroto agradável que produz uma esperança prestes a realizar-se, e
precede a satisfação de um desejo afagado de nossa alma.
Às seis horas o sino pequeno da Sé, tangido rapidamente, soltou os alegres repiques, que
pelo som argentino parecem as vozes travessas dos anjos do Senhor, chamando os fiéis;
os ecos vibrando no ar foram apressar as palpitações de muito coração que os esperava
com impaciência.
Quase ao mesmo tempo o carrilhão do Colégio
...
dos Jesuítas retroando pelo espaço
acompanhava o canto matutino da torre episcopal; suas notas graves, sombrias e
plangentes, unindo-se aos repiques das outras igrejas, formavam o concerto majestoso
com que a religião da luz e da verdade saúda o nascimento do dia.
Apenas a primeira badalada do sino repercutiu nos ares e a larga portada da Sé abriu de
par em par, o grupo de velhas beatas, que tinham amanhecido no adro da igreja, envoltas
em longas mantilhas de rebuço, esgueirou-se pela teia das naves e lá foi tomar lugar no
cruzeiro.
Em pouco as lájeas do vasto pavimento se iam cobrindo daquelas trouxas negras ou
pardas de seda e burel, que nem longes tinham de vulto humano; da massa enorme
elevou-se um sussurro, a princípio imperceptível, e foi crescendo, como se um enxame de
vespas esvoaçasse pelo âmbito da igreja.
Nesse momento invadiu o altar uma corporação, que hoje tem perdido muito da sua
primitiva importância social, mas que no século XVII representava um papel distinto em
todas as carolices e galhofas da época; doze meninos do coro, metidos em sacos de lã
vermelha, espalharam-se pelo corpo da igreja armados do competente acendedor.
Foi um rebuliço: os rapazes travessos, rindo como perdidos, pisavam de propósito os
vestidos das velhas devotas, que se conchegavam resmoneando uma ladainha de
imprecações; a mocidade imprudente não respeitava a velhice; os ânimos se
exacerbavam, o sangue fervia; afinal, esgotado de parte a parte o rosário das injúrias
consagradas pelo estilo, os dois campos lançaram mutuamente o último e o mais terrível
dos insultos.
Os rapazes soltaram a palavra infamante de barata, a que as velhas retorquiram com o
epíteto não menos afrontoso de formigão: e depois disso, como não havia despique
possível de tão grande provocação, a não serem as vias de fato que o respeito do lugar
impedia, cada uma das duas hostes inimigas retraiu-se e voltou silenciosamente a suas
ocupações.
Er ...
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