Livro: Encarnação Página 2
Autor - Fonte: José de Alencar
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rio, ou pela severa educação que recebera, ou por tardio desenvolvimento, Amália
conservara-se criança além do período natural da infância. Aos dezessete anos ainda se lembrava de suas
lindas bonecas, bem guardadas em uma cômoda, onde as conservava como recordação da meninice; e mais
de uma vez aconteceu-lhe no dia seguinte a um baile representar ao vivo com essas figuras de cera e cetim as
quadrilhas que dançara.
Quando o coração menino dessa moça elegante e espirituosa pulsou pela primeira vez, já tinha
ouvido tantas vezes declarações e protestos ardentes, que não passavam para ela de uma linguagem polida e
lisonjeira, adotada na sociedade
Gabar-lhe a beleza, ou elogiar-lhe o vestido, era a mesma fineza. Quando um dos seus apaixonados
animou-se o primeiro a dizer-lhe com a voz trêmula que a amava, ela o ouviu calma, sem a menor emoção,
como se lhe falassem de música ou de pintura. O que lhe causou alguma surpresa foi o esforço e turbação do
cavalheiro ao proferir aquelas palavras.
Entretanto, quem observasse a vida íntima dessa moça, conheceria o fundo de sensibilidade e
ternura que havia sob aquela aparência frívola e risonha. Não só tinha amor extremoso à família e dedicação
pelas amigos, mas em certos momentos, como se a afogasse uma exuberância do coração, cobria a mãe de
carinhos.
Alguma vez, nas horas de repouso, quando a imaginação vagueia pelo azul, ela fazia também como
todas as moças o seu romance; com a diferença, porém, que o das outras era esperança de futuro, ardente
aspiração d´ alma; enquanto o seu não passava de sonho fugace, ou simples devaneio do espírito.
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Um traço singular destas cismas é que elas faziam contraste ao modo habitual da moça, ao seu
gênio. Essa natureza alegre e expansiva, esse coração incrédulo e desdenhoso, quando fantasiava os seus
idílios, reservava sempre para si a melancolia, a abnegação e o obscuro martírio de uma paixão infeliz.
Seria u
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pressentimento? Creio eu que não era senão uma antítese natural da imaginação com o
espírito. É muito freqüente encontrarem-se caracteres joviais que têm o sentimento elegíaco, e ao contrário,
misantropos com uma veia cômica inexaurível.
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Capítulo 2
Na chácara contígua à do Sr. Veiga, pelo lado esquerdo, morava um desses homens que o povo
designa com o nome de esquisitos.
Os amigos o chamavam Carlos; os estranhos tratavam-no por Sr. Hermano; ele, porém, costumava
assinar-se H. de Aguiar.
Para merecer do vulgo a qualificação de esquisito, basta às vezes sair da trilha batida; mas o Sr.
Hermano tinha com efeito hábitos e ações que excitavam o reparo e lhe davam certo cunho de originalidade.
Não se lhe conhecia profissão; sabia-se entretanto que era abastado, pois além da chácara de sua
residência, possuía apólices e prédios na cidade.
Sua casa vivia constantemente fechada na frente, e tinha o aspecto de uma morada em vacância
pela ausência do dono. Quem olhava pela grade do portão, sempre trancado, não descobria outro indício de
habitação a não ser o fumo da chaminé.
Todavia nas raras vezes em que soava a grossa campa da entrada, aparecia logo um velho criado,
todo vestido de preto, que introduzia a visita com uma cortesia respeitosa, mas fria e taciturna.
O dono da casa costumava ir à cidade três vezes na semana, para tratar de seus negócios, ou talvez
para não se isolar totalmente do mundo, de que já vivia tão apartado. Também saía de passeio, a pé ou a
cavalo, pelos arrabaldes.
Certas ocasiões mostrava-se afável, polido, atencioso e expansivo, retribuindo os cumprimentos
que recebia, e dirigindo-os às pessoas de seu conhecimento. Era então um modelo do homem de boa
sociedade e fina educação.
Outros dias estava de tal modo concentrado que passava pelas ruas como um incógnito; não falava
a ninguém; não fazia caso das pessoas de maior consideração e a quem acatava. Se algum amigo ...
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