Livro: Um esqueleto Página 2
Autor - Fonte: Machado de Assis
...
doutor
sorriu sem olhar para mim. Não insisti na pergunta; arrependi-me até de lha ter feito.
— Fui casado, disse ele, depois de algum tempo, e daqui a três meses posso dizer outra
vez: sou casado.
— Vai casar?
— Vou.
— Com quem?
— Com a D. Marcelina.
D. Marcelina era uma viúva de Ouro Preto, senhora de vinte e seis anos, não formosa,
mas assaz simpática, possuía alguma cousa, mas não tanto como o doutor, cujos bens
orçavam por uns sessenta contos.
Não me constava até então que ele fosse casar; ninguém falara nem suspeitara tal cousa.
— Vou casar, continuou o Doutor, unicamente porque o senhor me falou nisso. Até cinco
minutos antes nenhuma intenção tinha de semelhante ato. Mas a sua pergunta faz-me
lembrar que eu efetivamente preciso de uma companheira; lancei os olhos da memória a
todas as noivas possíveis, e nenhuma me parece mais possível do que essa. Daqui a três
meses assistirá ao nosso casamento. Promete?
— Prometo, respondi eu com um riso incrédulo.
— Não será uma formosura.
— Mas é muito simpática, decerto, acudi eu.
— Simpática, educada e viúva. Minha idéia é que todos os homens deviam casar com
senhoras viúvas.
— Quem casaria então com as donzelas?
— Os que não fossem homens, respondeu o velho, como o senhor e a maioria do gênero
humano; mas os homens, as criaturas da minha têmpera, mas.
O doutor estacou, como se receasse entrar em maiores confidências, e tornou a falar da
viúva Marcelina cujas boas qualidades louvou com entusiasmo.
— Não é tão bonita como a minha primeira esposa, disse ele. Ah! essa. Nunca a viu?
— Nunca.
— É impossível.
— É a verdade. Já o conheci viúvo, creio eu.
— Bem; mas eu nunca lha mostrei. Ande vê-la. .
Levantou-se; levantei-me também. Estávamos assentados à porta; ele levou-me a um
gabinete interior. Confesso que ia ao mesmo tempo curioso e aterrado. Conquanto eu
fosse amigo dele e tivesse provas de que ele era me
...
amigo, tanto medo inspirava ele ao
povo, e era efetivamente tão singular, que eu não podia esquivar-me a um tal ou qual
sentimento de medo.
No fundo do gabinete havia um móvel coberto com um pano verde; o doutor tirou o pano
e eu dei um grito.
Era um armário de vidro, tendo dentro um esqueleto. Ainda hoje, apesar dos anos que lá
vão, e da mudança que fez o meu espírito, não posso lembrar-me daquela cena sem
terror.
— É minha mulher, disse o Dr. Belém sorrindo. É bonita, não lhe parece? Está na
espinha, como vê. De tanta beleza, de tanta graça, de tanta maravilha que me
encantaram outrora, que a tantos mais encantaram, que lhe resta hoje? Veja, meu jovem
amigo; tal é última expressão do gênero humano.
Dizendo isto, o Dr. Belém cobriu o armário com o pano e saímos do gabinete. Eu não
sabia o que havia de dizer, tão impressionado me deixara aquele espetáculo.
Viemos outra vez para as nossas cadeiras ao pé da porta, e algum tempo estivemos sem
dizer palavra um ao outro. O doutor olhava para o chão; eu olhava para ele. Tremiam-lhe
os lábios, e a face de quando em quando se lhe contraía. Um escravo veio falar-lhe; o
doutor saiu daquela espécie de letargo.
Quando ficamos sós parecia outro; falou-me risonho e jovial, com uma volubilidade que
não estava nos seus usos.
— Ora bem, se eu for feliz no casamento, disse ele, ao senhor o deverei. Foi o senhor
quem me deu esta idéia! E fez bem, porque até já me sinto mais rapaz. Que lhe parece
este noivo?
Dizendo isto, o Dr. Belém levantou-se e fez uma pirueta, segurando nas abas da casaca,
que nunca deixava, salvo quando se recolhia de noite.
— Parece-lhe capaz o noivo? disse ele.
— Sem dúvida, respondi.
— Também ela há de pensar assim. Verá, meu amigo, que eu meterei tudo num chinelo,
e mais de um invejará a minha sorte. É pouco; mais de uma invejará a sorte dela. Pudera
não? Não há muitos noivos como eu.
Eu não dizia nada, e o doutor continu ...
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