Livro: Um esqueleto
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Autor - Fonte: Machado de Assis
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LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Machado de Assis
Edição de Referência: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
CAPITULO PRIMEIRO
Eram dez ou doze rapazes. Falavam de artes, letras e política. Alguma anedota vinha de
quando em quando temperar a seriedade da conversa. Deus me perdoe! parece que até
se fizeram alguns trocadilhos.
O mar batia perto na praia solitária. estilo de meditação em prosa. Mas nenhum dos
doze convivas fazia caso do mar. Da noite também não, que era feia e ameaçava chuva.
É provável que se a chuva caísse ninguém desse por ela, tão entretidos estavam todos
em discutir os diferentes sistemas políticos, os méritos de um artista ou de um escritor, ou
simplesmente em rir de uma pilhéria intercalada a tempo.
Aconteceu no meio da noite que um dos convivas falou na beleza da língua alemã. Outro
conviva concordou com o primeiro a respeito das vantagens dela, dizendo que a
aprendera com o Dr. Belém.
— Não conheceram o Dr. Belém? perguntou ele.
— Não, responderam todos.
— Era um homem extremamente singular. No tempo em que me ensinou alemão usava
duma grande casaca que lhe chegava quase aos tornozelos e trazia na cabeça um
chapéu-de-chile de abas extremamente largas.
— Devia ser pitoresco, observou um dos rapazes. Tinha instrução?
— Variadíssima. Compusera um romance, e um livro de teologia e descobrira um
planeta.
— Mas esse homem?
— Esse homem vivia em Minas. Veio à corte para imprimir os dois livros, mas não achou
editor e preferiu rasgar os manuscritos. Quanto ao planeta comunicou a notícia à
Academia das Ciências de Paris; lançou a carta no correio e esperou a resposta; a
resposta não veio porque a carta foi parar a Goiás.
Um dos convivas sorriu maliciosamente para os outros, com ar de quem dizia que era
muita desgraça junta. A atitude porém do narrador tirou-lhe o gosto do riso. Alberto (era o
nom
...
do narrador) tinha os olhos no chão, olhos melancólicos de quem se rememora com
saudade de uma felicidade extinta. Efetivamente suspirou depois de algum tempo de
muda e vaga contemplação, e continuou:
— Desculpem-me este silêncio, não me posso lembrar daquele homem sem que uma
lágrima teime em rebentar-me dos olhos. Era um excêntrico, talvez não fosse, não era
decerto um homem completamente bom; mas era meu amigo; não direi o único mas o
maior que jamais tive na minha vida.
Como era natural, estas palavras de Alberto alteraram a disposição de espírito do
auditório. O narrador ainda esteve silencioso alguns minutos. De repente sacudiu a
cabeça como se expelisse lembranças importunas do passado, e disse:
— Para lhes mostrar a excentricidade do Dr. Belém basta contar-lhes a história do
esqueleto.
A palavra esqueleto aguçou a curiosidade dos convivas; um romancista aplicou o ouvido
para não perder nada da narração; todos esperaram ansiosamente o esqueleto do Dr.
Belém. Batia justamente meia-noite; a noite, como disse, era escura; o mar batia
funebremente na praia. Estava-se em pleno Hoffmann. Alberto começou a narração.
CAPÍTULO II
O Dr. Belém era um homem alto e magro; tinha os cabelos grisalhos e caídos sobre os
ombros; em repouso era reto como uma espingarda; quando andava curvava-se um
pouco. Conquanto o seu olhar fosse muitas vezes meigo e bom, tinha lampejos sinistros,
e às vezes, quando ele meditava, ficava com olhos como de defunto.
Representava ter sessenta anos, mas não tinha efetivamente mais de cinqüenta. O
estudo o abatera muito, e os desgostos também, segundo ele dizia, nas poucas vezes em
que me falara do passado, e era eu a única pessoa com quem ele se comunicava a esse
respeito. Podiam contar-se-lhe três ou quatro rugas pronunciadas na cara, cuja pele era
fria como o mármore e branca como a de um morto.
Um dia, justamente no fim da minha lição, perguntei-lhe se nunca fora casado. O ...
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