Livro: Maria Cora
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Autor - Fonte: Machado de Assis
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Machado de Assis
CAPÍTULO PRIMEIRO
UMA NOITE, voltando para casa, trazia tanto sono que não dei corda ao relógio. Pode
ser também que a vista de uma senhora que encontrei em casa do comendador T.
contribuísse para aquele esquecimento; mas estas duas razões destróem-se. Cogitação
tira o sono e o sono impede a cogitação; só uma das causas devia ser verdadeira.
Ponhamos que nenhuma, e fiquemos no principal, que é o relógio parado, de manhã,
quando me levantei, ouvindo dez horas no relógio da casa.
Morava então (1893) em uma casa de pensão no Catete. Já por esse tempo este gênero
de residência florescia no Rio de Janeiro. Aquela era pequena e tranqüila. Os
quatrocentos contos de réis permitiam-me casa exclusiva e própria; mas, em primeiro
lugar, já eu ali residia quando os adquiri, por jogo de praça; em segundo lugar, era um
solteirão de quarenta anos, tão afeito à vida de hospedaria que me seria impossível
morar só. Casar não era menos impossível. Não é que me faltassem noivas. Desde os
fins de 1891 mais de uma dama, -- e não das menos belas, -- olhou para mim com olhos
brandos e amigos. Uma das filhas do comendador tratava-me com particular atenção. A
nenhuma dei corda, o celibato era a minha alma, a minha vocação, o meu costume, a
minha única ventura. Amaria de empreitada e por desfastio. Uma ou duas aventuras por
ano bastavam a um coração meio inclinado ao ocaso e à noite.
Talvez por isso dei alguma atenção à senhora que vi em casa do comendador, na
véspera. Era uma criatura morena, robusta, vinte e oito a trinta anos, vestida de escuro;
entrou às dez horas, acompanhada de uma tia velha. A recepção que lhe fizeram foi
mais cerimoniosa que as outras; era a primeira vez que ali ia. Eu era a terceira.
Perguntei se era viúva.
-- Não; é casada.
-- Com quem?
-- Com um estancieiro do Rio Grande.
-- Chama-se?
-- Ele? Fonseca, ela Maria Cora.
-- O marido não veio com ela?
-- Está no Rio G
...
ande.
Não soube mais nada; mas a figura da dama interessou-me pelas graças físicas, que
eram o oposto do que poderiam sonhar poetas românticos e artistas seráficos. Conversei
com ela alguns minutos, sobre cousas indiferentes, -- mas suficientes para escutar-lhe a
voz, que era musical, e saber que tinha opiniões republicanas. Vexou-me confessar que
não as professava de espécie alguma; declarei-me vagamente pelo futuro do país.
Quando ela falava, tinha um modo de umedecer os beiços, não sei se casual, mas
gracioso e picante. Creio que, vistas assim ao pé, as feições não eram tão corretas como
pareciam a distância, mas eram mais suas, mais originais.
CAPÍTULO II
DE MANHÃ tinha o relógio parado. Chegando à cidade, desci a Rua do Ouvidor, até à
da Quitanda, e indo a voltar à direita, para ir ao escritório do meu advogado, lembroume
ver que horas eram. Não me acudiu que o relógio estava parado.
-- Que maçada! exclamei.
Felizmente, naquela mesma Rua da Quitanda, à esquerda, entre as do Ouvidor e
Rosário, era a oficina onde eu comprara o relógio, e a cuja pêndula usava acertá-lo. Em
vez de ir para um lado, fui para outro. Era apenas meia hora; dei corda ao relógio,
acertei-o, troquei duas palavras com o oficial que estava ao balcão, e indo a sair, vi à
porta de uma loja de novidades que ficava defronte, nem mais nem menos que a senhora
de escuro que encontrara em casa do comendador. Cumprimentei-a, ela correspondeu
depois de alguma hesitação, como se me não houvesse reconhecido logo, e depois
seguiu pela Rua da Quitanda fora, ainda para o lado esquerdo.
Como tivesse algum tempo ante mim (pouco menos de trinta minutos), dei-me a andar
atrás de Maria Cora. Não digo que uma força violenta me levasse já, mas não posso
esconder que cedia a qualquer impulso de curiosidade e desejo; era também um resto da
juventude passada. Na rua, andando, vestida de escuro, como na véspera, Maria Cora
pareceu-me ainda melho ...
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