Livro: Amor com amor se paga Página 3
Autor - Fonte: França Junior
...
uito, e podes avaliar os apuros em que me vejo.
VICENTE - Chamava-se. Que maldita memória!
MIGUEL - Eu tenho os pés em cima de uma cratera.
VICENTE - Repita, repita esta palavra estrangeira, que o senhor acaba de dizer.
MIGUEL - Cratera!
VICENTE (Batendo na testa.) - É isso mesmo! Maria Joaquina chamava-se a crioula. (Ouvese
o rodar de um carro.) E meu amo, saia, senhor; não me comprometa.
MIGUEL - Nestes trajes? Mas por onde?
VICENTE - Saia por aqui. (Indicando a porta da esquerda.) Por aí não.
MIGUEL - Que noite, meu Deus!
VICENTE - Esconda-se, esconda-se, senhor; não há tempo a perder. Eles sobem já a
escada. (Miguel vai sair por uma das portas da direita, que deve estar fechada, esbarra-se
nela e esconde-se embaixo da mesa.)
CENA IV
OS MESMOS, EDUARDO COUTINHO e ADELAIDE CARNEIRO
EDUARDO - Apoie-se no meu braço. Não tenha o mais pequeno receio. Estamos sós. (Para
Vicente.) Passa para dentro. (Vicente sai.) Ninguém testemunhará as nossas confidências e
aqui, entre as quatro paredes deste aposento, longe dos falsos ouropéis do mundo que se
agita lá fora, escreveremos a página mais feliz da nossa vida.
MIGUEL (À parte.) - Uma entrevista!
ADELAIDE - Sinto faltarem-se-me as forças, mas como são gratas estas emoções!
MIGUEL (À parte.) - Eu conheço esta voz.
ADELAIDE - Afigura-se-me Parisina, indo ao encontro do desditoso amante nessa hora em
que o rouxinol, oculto na espessa ramagem, modula as mais sentidas endeixas. Lembra-se
desta situação? É logo no primeiro canto do poema. Oh! mas este amor criminoso não há de
levar-me ao sepulcro. Eu terei a força necessária para arrancá-lo do peito.
MIGUEL (À parte.) - Esta voz é de minha mulher!
EDUARDO - Oh! não fales na fria lousa que deve encerrar os restos preciosos de tua beleza,
diante da vida que nos sorri.
Ah! não fales em sepulcro
Quando a esp\'rança nos sorri.
MIGUEL (À parte.) -
Ah! patife de uma figa,
Quanta gana tenho em ti.
ADELAIDE -
O amor
...
é sentimento
Que a mulher prende e seduz,
Somos qual a mariposa
Que queima as asas na luz.
EDUARDO -
Se o amor é sentimento
Que a mulher prende e seduz,
Voemos juntos, voemos
Em torno da mesma luz.
MIGUEL -
Ó que lábia de patife,
Que finório sedutor!
Muito caro hás de pagar-me
As venturas deste amor.
ADELAIDE - É justamente como disse Byron: - Na vida homem o amor é um episódio; para a
mulher é a existência inteira.
MIGUEL (À parte.) - Cita Byron! É minha mulher. Estava escrito que aquele livro perigoso me
havia de ser fatal.
EDUARDO - E no entretanto, por que te mostras tão esquiva para comigo, fazendo surgir
sempre entre nossos corações, que palpitam cheios de vida e de esperança, a imagem
severa de teu marido?
MIGUEL (À parte.) - Que patife!
ADELAIDE - É porque amo muito meu marido. Quando vi pela primeira vez aquela fronte
pálida, aqueles olhos lânguidos e rasgados, exclamei: - Ali está uma alma de poeta! E em
minha mente, incendiada pela flama da mais radiante poesia, desenhou-se em toda a
majestade o tipo de D. Juan, acordando à luz amortecida das estrelas do céu da Grécia, no
regaço perfumado da divina Haidéia.
EDUARDO - Eu serei o teu D. Juan; deixa-me repousar também a fronte em teu regaço.
MIGUEL (À parte.) - Que noite, meu Deus!
ADELAIDE - Meu marido também me dizia o mesmo nos dias felizes da lua de mel. Um mês
depois de ter-me levado ao altar, ria-se quando eu lhe falava da nossa felicidade, virava-me
as costas, quando lhe exprobava o seu comportamento, e o ósculo marital que me dava ao
entrar em casa, era dizer-me que o feijão estava muito caro.
MIGUEL (À parte.) - E é por causa da carestia do feijão que esta mulher, mesmo nas minhas
bochechas. Vou fazer uma estralada.
EDUARDO - Deixa-me abraçar esta cintura delicada. (Faz menção de abraçá-la.)
ADELAIDE - Não me toque, senhor. Eu já lhe disse que amo muito meu marido, apesar da
indiferença com que sou tratada. Há neste ...
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