Livro: Amor com amor se paga Página 2
Autor - Fonte: França Junior
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es o que me aconteceu, desgraçado, terias dó de mim.
VICENTE - Percebo. (Gira com os dedos da mão direita ao redor do dedo grande.)
MIGUEL - Não me julgues pelo que acabas de ouvir. "Pega ladrão" é uma fórmula de que o
povo se serve para alcançar o infeliz que a polícia persegue. Eu sou uma vítima do amor.
Imagina uma cena de Julieta e Romeu, sem balcão nem escada de corda. Eu e ela! Por cima
de nossas cabeças o céu crivado de estrelas e por teatro da nossa felicidade um modesto
quintal. À hora indicada abro a porta com esta chave (Mostrando-a.), coso-me ao muro como
uma lagartixa e espero, mal podendo conter a respiração, que aparecesse o anjo dos meus
sonhos. Um cachorrinho felpudo, ou antes a imagem do diabo, aparece na porta da cozinha,
e seus latidos foram bastantes para acordar um galo e com ele toda a pacífica população, que
dormia empoleirada no galinheiro. O ruído que fizeram os gansos do Capitólio na cidadela de
Roma, pondo em alarma as forças de Manlio, não pode ser equiparado à algazarra infernal
que houve naquela casa. O grito de "pega ladrão" veio coroar a obra. Esgueiro-me pela rua, e
começo a correr como um veado, perseguido por dois urbanos, em cujas mãos deixei o paletó
e por uma súcia de vagabundos, que afinavam o maldito "pega" em todos os tons. Foi esta a
única porta aberta que encontrei. Salva-me, salva-me por tudo quanto tens de mais caro
sobre a terra.
VICENTE - Mas o senhor não pode ficar aqui: meu amo não tarda, e ele recomendou-me.
Oh diabo, lá ia dando com a língua nos dentes.
MIGUEL - Desalmado, queres me expor ao ridículo da sociedade? Não sabes que tenho um
emprego público, que sou o juiz de paz mais votado da freguesia, que tenho mulher e filhos e
que, se caio nas garras da polícia, depois de amanhã aparecerá o meu nome nos jornais
como o de um larápio?
VICENTE - Mas, senhor.
MIGUEL - Queres reduzir-me à triste posição de filho do Celeste Império, atacando a horas
m
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rtas os galinheiros estranhos?
VICENTE - E por que foi se meter o senhor em camisas de onze varas? É boa!
MIGUEL - Tu não sabes o que é o amor. Sentir no peito as pulsações de um Coração, que se
expande em suaves harmonias, ouvir de uns lábios purpurinos palavras de consolo, como
notas místicas de um coro de anjos, apertar a mão cetinosa, que se nos confia a medo,
sobraçar a cintura que foge. Olha. Como te chamas?
VICENTE - Vicente Maria do Amparo, um seu criado.
MIGUEL - Nunca amaste, Vicente?
VICENTE - Que o diga o meu violão. Nós cá não amamos como os senhores, que dizem às
moças umas bobages e umas tolices que ninguém entende. Passa-se, pisca-se o olho.
Assim, olhe. (Arremedando.) De noite reúne-se a troça debaixo da janela da crioula, e o violão
começa a gemer.
MIGUEL - Mas que diabo lucras tu com isto?
VICENTE - Não exponho o pêlo a uma sova de pau como lhe ia acontecendo, e a gente se
adverte.
MIGUEL - És engraçado.
VICENTE - Deita-se o cigarro atrás da orelha, afina-se o violão, e a gente canta assim
(Segurando o violão e cantando):
Trovador, o que tens, o que sofres,
Por que choras com tanta aflição.
Olhe só este transporte (Ferindo o violão.); isto chama-se tom de pestana.
O teu pranto assaz me compunge,
Trovador, ah! não chores mais, não.
O essencial é que se floreie bem nos bordões e que este pedaço de pau (Mostrando o
violão.) não trasteje na prima. Eu cá sou músico de orelha, mas.
MIGUEL - E é por isso que flagelas as orelhas de tuas amadas.
VICENTE - Oh! mas conheço isto a palmos. (Indicando o violão.) Lá vai o resto.
Se acaso a mulher que tu amas
Te tratou com acerbo rigor,
Trovador, ah! por isto não chores.
MIGUEL - Está bom, basta.
VICENTE - Cantei esta modinha pela primeira vez debaixo da janela do meu primeiro amor.
Era uma crioula linda como os amores; chamava-se. chamava-se. (Procurando recordarse.)
Como se chamava ela, Vicente?
MIGUEL - Pois bem; tu já amaste m ...
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