Livro: Crônicas de Londres Página 2
Autor - Fonte: Eça de Queirós
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stinto da raça é militar: todo o turco ganha facilmente o hábito de ser
soldado; perde mais facilmente o hábito de ser cultivador.
Este exército desmobilizado dispersar-se-ia através de províncias pobres, assoladas pela
insurreição, e seria um elemento de desordem, de pilhagem, de deboche, e a renovação das
cenas da Bulgária: assim o sentimento nacional, estreitas questões de ambição pessoal,
inextricáveis dificuldades financeiras – aí está o que leva a Turquia à guerra.
O imperador da Rússia, por seu lado, é impelido também pelo entusiasmo público.
Um retraimento agora poderia causar como na Turquia um abalo revolucionário em toda a
Rússia. E um ódio nacional: os jornais, pela exaltação da sua cólera, pelas narrações
permanentes das crueldades e das opressões turcas sobre os cristãos; os comités de Moscovo
pela sua vasta influência; o sacerdócio russo por uma prédica irritada e fanática mantêm o
espírito nacional num furor permanente contra o Turco; a guerra e considerada santa, sem
nenhuma ideia de conquista, de anexação; é possível que a plebe e a rica burguesia mercantil
de Moscovo e das cidades pensem em Constantinopla; mas as classes militares, a
aristocracia, sabem bem que nem a Inglaterra nem a Áustria lhes permitiriam aumentar o
território: e realmente por um puro sentimento, pela libertação dos cristãos que se batem. E no
fundo os dois governos – russo e turco são impelidos por um fanatismo contrario.
Qual será o resultado da luta? A desproporção de forças na fronteira é grave: os Russos têm
duzentos e setenta e cinco mil homens de infantaria, vinte mil cavalos e novecentas peças de
artilharia. Os Turcos têm cento e cinquenta mil homens de infantaria, três mil cavalos e
duzentos e dezasseis canhões. Este número inferior é compensado por esta consideração:
que o Turco é atacado e o Russo ataca – ora é conhecido que o Russo é o mais vagaroso e
insuficiente dos exé
...
citos de ataque e o Turco é um admirável soldado de defesa. Ninguém
como ele para manter uma posição: é ainda uma qualidade que a sua religião lhe deu: a
impassibilidade.
Os Russos decerto podem mobilizar rapidamente grandes forças, mas aos Turcos basta-lhes
levantar o estandarte do Profeta para que todo o maometanismo, sejam quais forem as
dissidências de seita, corra às armas.
Kalil Paxá, o embaixador da Turquia em Paris, dizia há dias, como o velhaco sorriso de velho
maometano:
– Nós esperamos: e a verdadeira guerra havemos de fazê-la com a Arábia e a Índia.
Uma das infelicidades da Turquia é talvez não ter realizado a sua aliança com a Pérsia. A
Pérsia podia fazer uma terrível diversão sobre a fronteira asiática da Rússia, e obrigá-la a
dividir as suas forças. Mas a aliança persa, segundo os bem informados, foi concluída com a
Rússia e o exército persa está armado, disciplinado, instruído, comandado pela Rússia.
Que fará a Inglaterra? Há aqui mesmo mil opiniões. A mais geral, há tempos, era a de absoluta
indiferença.
«A Rússia», dizia-se, «não se atreve a tentar uma anexação: mas mesmo que ela vá a
Constantinopla, que importa à Inglaterra?» O caminho da Índia não fica por isso menos livre.
Além disso, é digno que a Inglaterra tome o partido de massacradores fanáticos e de
devedores insolúveis? E depois de que serve fazermos esforços para conservar a integridade
de um país que todos os dias, pela sua relaxação e a sua imprevidência se vai desorganizando
a si mesmo? Que se lucrou com o dinheiro, o sangue, que se prodigalizou na guerra de 52?
Para que se há-de intervir num duelo que a história e a fé tornam inevitáveis? Assim se falava.
Hoje, porém, perante a crise, a linguagem mudou. «Não se poderia realmente compreender»,
diz-se agora, «que a guerra não tenha como resultado, dada a vitória da Rússia, uma
anexação de território»: daí a desmembração do império ...
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