Livro: Anedota do Cabriolet
Autor - Fonte: Machado de Assis
...
de Machado de Assis
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Universidade Federal de Santa Catarina
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ANEDOTA DO CABRIOLET
-- CABRIOLET está aí, sim senhor, dizia o preto que viera à matriz de S. José chamar o
vigário para sacramentar dous moribundos.
A geração de hoje não viu a entrada e a saída do cabriolet no Rio de Janeiro. Também
não saberá do tempo em que o cab e o tilbury vieram para o rol dos nossos veículos de
praça ou particulares. O cab durou pouco. O tilbury, anterior aos dous, promete ir à
destruição da cidade. Quando esta acabar e entrarem os cavadores de ruínas, achar-se-á
um parado, com o cavalo e o cocheiro em ossos esperando o freguês do costume. A
paciência será a mesma de hoje, por mais que chova, a melancolia maior, como quer
que brilhe o sol, porque juntará a própria atual à do espectro dos tempos. O arqueólogo
dirá cousas raras sobre os três esqueletos. O cabriolet não teve história; deixou apenas a
anedota que vou dizer.
-- Dous! exclamou o sacristão.
-- Sim, senhor, dous, nhã Anunciada e nhô Pedrinho. Coitado de nhô Pedrinho! E nhã
Anunciada, coitada! continuou o preto a gemer, andando de um lado para outro, aflito,
fora de si.
Alguém que leia isto com a alma turva de dúvidas, é natural que pergunte se o preto
sentia deveras, ou se queria picar a curiosidade do coadjutor e do sacristão. Eu estou que
tudo se pode combinar neste mundo, como no outro. Creio que ele sentia deveras; não
d
...
screio que ansiasse por dizer alguma história terrível. Em todo caso, nem o coadjutor
nem o sacristão lhe perguntavam nada.
Não é que o sacristão não fosse curioso. Em verdade, pouco mais era que isso. Trazia a
paróquia de cor; sabia os nomes às devotas, a vida delas, a dos maridos e a dos pais, as
prendas e os recursos de cada uma, e o que comiam, e o que bebiam, e o que diziam, os
vestidos e as virtudes, os dotes das solteiras, o comportamento das casadas, as saudades
das viúvas. Pesquisava tudo: nos intervalos ajudava a missa e o resto. Chamava-se João
das Mercês, homem quarentão, pouca barba e grisalho, magro e meão.
"Que Pedrinho e que Anunciada serão esses?" dizia consigo, acompanhando o
coadjutor.
Embora ardesse por sabê-los, a presença do coadjutor impediria qualquer pergunta. Este
ia tão calado e pio, caminhando para a porta da igreja, que era força mostrar o mesmo
silêncio e piedade que ele. Assim foram andando. O cabriolet esperava-os; o cocheiro
desbarretou-se, os vizinhos e alguns passantes ajoelharam-se, enquanto o padre e o
sacristão entravam e o veículo enfiava pela Rua da Misericórdia. O preto desandou o
caminho a passo largo.
Que andem burros e pessoas na rua, e as nuvens no céu, se as há, e os pensamentos nas
cabeças, se os têm. A do sacristão tinha-os vários e confusos. Não era acerca do Nosso-
Pai, embora soubesse adorá-lo, nem da água benta e do hissope que levava; também não
era acerca da hora, -- oito e quarto da noite, -- aliás, o céu estava claro e a lua ia
aparecendo. O próprio cabriolet, que era novo na terra, e substituía neste caso a sege,
esse mesmo veículo não ocupava o cérebro todo de João das Mercês, a não ser na parte
que pegava com nhô Pedrinho e nhã Anunciada.
"Há de ser gente nova, ia pensando o sacristão, mas hóspede em alguma casa, decerto,
porque não há casa vazia na praia, e o número é da do Comendador Brito. Parentes,
serão? Que parentes, se nun ...
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