Livro: Muitos anos depois Página 2
Autor - Fonte: Machado de Assis
...
ade dos
costumes.
Quando num dia de manhã, à mesa do almoço, Flávio declarou ao padre que queria servir
à Igreja, este que era sincero servidor dela, sentiu imenso júbilo e abraçou o moço com
efusão.
— Eu não podia pedir, disse Vilela, melhor profissão para o meu filho.
O nome de filho era o que lhe dava o padre e com razão lhe dava, porque se Flávio não
lhe devia o ser, devia-lhe a criação e a educação.
Vilela fora muitos anos antes vigário em uma cidade de Minas Gerais; e aí conhecera um
lindo menino que uma pobre mulher educava como podia.
— É seu filho? perguntou-lhe o padre.
— Não, reverendíssimo, não é meu filho.
— Nem afilhado?
— Nem afilhado.
— Nem parente?
— Nem parente.
O padre não perguntou mais nada, suspeitando que a mulher ocultava coisa que não
podia dizer. Ou fosse por essa circunstância, ou porque o menino lhe inspirava simpatia, o
fato é que o padre não perdeu de vista aquela pobre família composta de duas pessoas.
Naturalmente caridoso, não poucas vezes o padre ajudava a mulher nas necessidades de
sua vida. A maledicência não deixou de abocanhar a reputação do padre com respeito à
proteção que dava à mulher. Mas ele tinha uma filosofia singular: olhava por cima do
ombro os caprichos da opinião.
Como o menino já tivesse oito anos, e não soubesse ler, quis o padre Vilela começar a
educação dele e a mulher agradecida aceitou os obséquios do padre.
A primeira coisa que o mestre admirou no discípulo foi a docilidade com que ele ouvia as
lições e afinco e zelo com que as estudava. É natural da criança preferir os brincos aos
labores do estudo. O menino Flávio fazia do aprender uma regra e do brincar uma
exceção, isto é, primeiro decorava as lições que o mestre lhe dava, e só depois de as ter
sabidas é que se ia divertir com os outros rapazes seus companheiros.
Com este merecimento, tinha o menino outro ainda maior, era o de uma inteligência clara,
e
...
imediata compreensão, de maneira que ia entrando nos estudos com pasmosa rapidez
e inteira satisfação do mestre.
Um dia, adoeceu a mulher, e foi caso de verdadeira aflição para as duas criaturas a quem
ela mais estimava, o padre e o pequeno. Agravou-se a moléstia a ponto de ser necessário
aplicarem-se os sacramentos. Flávio, já então de doze anos, chorava que fazia dó. A
mulher expirou beijando o menino:
— Adeus, Flávio, disse ela, não te esqueças de mim.
— Minha mãe! exclamou o pequeno abraçando a mulher.
Mas ela já o não podia ouvir.
Vilela pôs-lhe a mão sobre o coração, e voltando-se para Flávio disse:
— Está com Deus.
Não tendo ninguém mais neste mundo, o menino ficara à mercê do acaso, se não fosse
Vilela que imediatamente o levou consigo. Como já havia intimidade entre os dois, não foi
difícil ao pequeno a mudança; contudo nunca se lhe varria da memória a idéia da mulher
que ele, não só chamava mãe, como até a tinha por isso, visto que não conhecera outra.
A mulher, na véspera de morrer, mandou pedir ao padre lhe viesse falar. Quando ele
chegou, mandou sair o pequeno e disse-lhe:
— Vou morrer, e não sei o que há de ser de Flávio. Não ouso pedir-lhe, reverendíssimo,
que o tome para si; mas quisera que fizesse alguma coisa por ele, que o recomende a
algum colégio da caridade.
— Descanse, respondeu Vilela; eu me incumbo do rapaz.
A mulher olhou agradecida para ele.
Depois fazendo um esforço tirou debaixo do travesseiro uma carta lacrada e entregou-a
ao padre.
— Esta carta, disse ela, foi-me entregue com este menino; é escrita por sua mãe; tive
ordem de lhe entregar quando ele completasse vinte e cinco anos. Não quis Deus que eu
tivesse o gosto de cumprir a recomendação. Quer V. Revmª. incumbir-se dela?
O padre pegou na carta, leu o sobrescrito que dizia assim: A meu filho.
Prometeu entregar a carta no prazo indicado.
III
Flávio não desmentiu as esperanças do padre. ...
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