Livro: O Monstro e Outros contos Página 2
Autor - Fonte: Humberto de Campos
...
o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse,
tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço. Queres?
A Morte assentiu, e desceram, ambas, à margem do rio; onde se acocoraram, sombrias,
modelando o seu filho.
- Eu darei a água. - disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos,
no lençol vagaroso da corrente.
- Eu darei o barro. - ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol
endurecera.
E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra que,
assim, trabalhava inutilmente.
- Traze mais água! - pedia.
A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este, logo, se amoldava, escuro, ao
capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, Os braços,
o ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um jeito, mais forte ou mais leve, da escultora
silenciosa.
- Mais água! - pedia esta, logo que o barro se tornava menos dócil.
E a Dor enchia as mãos na corrente, e levava-a à companheira.
Horas depois, possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo
habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo, embora, nas suas particularidades,
uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os
seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés, como as aves, e trepava, rápido, como os
bugios.
O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os uros, que jamais se
haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo, à sua aproximação. As aves
piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se
nele, arreganhavam o dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser
invadida, naquele instante, por um inimigo inesperado.
Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem pela margem do rio, custodiado
pela Dor e pela Morte. No seu espirito inseguro, sur
...
iam, às vezes, interrogações
inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque
reconheciam, unânimes, a sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em
amedrontar as aves, e em perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem
do rio, esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os
animais que lhe pareciam mais fracos.
Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram, disputando-se a primazia na
criação do abantesma.
- Quem o criou fui eu! - dizia a Morte. - Fui eu quem contribuiu com o barro!
- Fui eu! - gritava a outra. - Que farias tu sem a água, que amoleceu a lama?
E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram, as duas, que cada uma tiraria
da sua criatura a parte com que havia contribuído.
- Eu dei a água! - tornou a Dor.
- Eu dei o barro! - insistiu a Morte.
Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as
tenazes das mãos. A água, que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e
começou a cair, gota a gota. Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi
embora. A Morte aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu.
Humberto de Campos
A PROMESSA
I
Foi um alvoroço na vila quando se soube que alguns rapazes do lugar haviam sido sorteados
para o Exército. Há meses, andara por lá, tomando nota dos nomes, um capitão, que levara o
endereço de todos; e ninguém se lembrava mais dele, nem da sua farda, quando chegou
aquela notícia, alarmando as mães, afligindo as noivas, mas entusiasmando, ao mesmo
tempo, a mocidade vigorosa da terra, atingida pela convocação.
- No tempo do Paraguai - diziam os velhos, cachimbando monotonamente à sombra fresca
das latadas, - o remédio era o mato. Ou, então, passar o facão na mão direita e cortar uns
dois dedos para não puxar o gatilho.
E enumeravam-se os que, por esse modo ...
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