Livro: Viagem à roda de mim mesmo Página 4
Autor - Fonte: Machado de Assis
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lheres, como as barretadas dos homens, são atos de cortesia,insignificantes; mas
atribuí sempre este dito a intriga. Valsou uma só vez, e foi comigo. Pedi-lhe uma
quadrilha, recusou-a, dizendo que preferia conversar. O que dissemos, não sei bem; lá se
vão vinte e um anos; lembro-me só que falei menos que ela, que a maior parte do tempo
deixei-me estar encostado, a ver cair-lhe da boca uma torrente de cousas divinas.
Lembrei-me duas vezes do Veiga, mas, de propósito, não consultei o relógio, com medo.
— Você está completamente tonto, disse-me um amigo.
Creio que sorri, ou dei de ombros, fiz qualquer cousa, mas não disse nada, porque era
verdade que estava tonto e tontíssimo. Só dei por mim, quando ouvi bater a portinhola do
carro de Henriqueta. Os cavalos trotaram logo; eu, que estava à porta, puxei o relógio
para ver as horas, eram duas. Tive um calafrio, ao pensar no doente. Corri a buscar a
capa, e voei para casa, aflito, receando algum desastre. Andando, não evitava que o perfil
de Henriqueta viesse interpor-se entre mim e ele, e uma idéia corrigia outra. Então, sem o
sentir, afrouxava o passo, e dava por mim ao pé dela ou aos pés dela.
Cheguei à casa, corri ao quarto do Veiga; achei-o mal. Um dos três deputados velava,
enquanto os outros tinham ido tomar algum repouso. Haviam regressado da reunião antes
de uma hora, e acharam o enfermo delirante. O criado adormecera. Não sabiam quanto
tempo ficara o doente abandonado; tinham mandado chamar o médico.
Ouvi calado e vexado. Fui despir-me para velar o resto da noite. No quarto, a sós
comigo, chamei-me ingrato e tolo; deixara um amigo lutando com a doença, para correr
atrás de uns belos olhos que podiam esperar. Caí na poltrona; não me dividi fisicamente,
como me parecera em criança; mas moralmente desdobrei-me em dous, um que
imprecava, outro que gemia. No fim de alguns minutos, fui despir-me e passei ao quarto
do enfermo, onde fiquei até de manhã.
Pois be
; não foi ainda isto que me deixou um vinco de ressentimento contra
Henriqueta; foi a repetição do caso. Quatro dias depois tive de ir a um jantar, a que ela ia
também. Jantar não é baile, disse comigo; vou e volto cedo. Fui e voltei tarde, muito tarde.
Um dos deputados disse-me, quando saí, que talvez achasse o colega morto: era a
opinião do médico assistente. Redargüi vivamente que não: era o sentimento de outros
médicos consultados.
Voltei tarde, repito. Não foram os manjares, posto que preciosos, nem os vinhos,
dignos de Horácio; foi ela, tão-só ela. Não senti as horas, não senti nada. Quando cheguei
à casa era perto de meia-noite. Veiga não morrera, estava salvo de perigo; mas entrei tão
envergonhado que simulei uma doença, e meti-me na cama. Dormi tarde, e mal, muito
mal.
CAPÍTULO III
AGORA NÃO DEVIA acontecer-me o mesmo. Vá que, em criança, corresse duas vezes
às frutas do vizinho; mas a repetição do caso do Veiga era intolerável, e a deste outro
seria ridícula.
Tive idéia de escrever uma carta, longa ou breve, pedindo-lhe a mão. Cheguei a pôr a
pena no papel e a começar alguns rascunhos. Vi que era fraqueza e determinei ir em
pessoa; pode ser também que esta resolução fosse um sofisma, para escapar às lacunas
da carta. Era de noite; marquei o dia seguinte. Saí de casa e andei muito, pensando e
imaginando, voltei com as pernas moídas e dormi como um ambicioso.
De manhã, pensei ainda no caso, compus de cabeça a cerimônia do casamento,
pomposa e rara, chegando ao ponto de transformar tudo o que estava em volta de mim.
Fiz do trivial e desbotado quarto de pensão um rico boudoir, com ela dentro, falando-me
da eternidade.
— Plácido!
— Henriqueta!
De noite é que fui à casa dela. Não digo que as horas andaram vagarosíssimas, nesse
dia, porque é a regra delas quando as nossas esperanças abotoam. Batalhei de cabeça
contra Henriqueta; e assim como por esse tempo, à espera que me fize
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