Livro: Viagem à roda de mim mesmo Página 3
Autor - Fonte: Machado de Assis
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admito que andem na cabeça de outras
pessoas a meu respeito, foram então ditos e ouvidos, sem maior indignação, na rua e ao
jantar. De noite, para distrair-me, fui ao teatro; mas nos intervalos o duelo era o mesmo,
um pouco menos furioso. No fim da noite, estava reconciliado comigo, mediante a
obrigação que tomei de não deixar Henriqueta ir para Petrópolis, sem declarar-lhe tudo.
Casar com ela ou voltar à província.
"Sim, disse a mim mesmo; ela há de pagar-me o que me fez fazer ao Veiga."
Veiga era um deputado que morava com outros três na casa de pensão, e de todos os
da legislatura foi o que se me mostrou particularmente amigo. Estava na oposição, mas
prometia que, tão depressa caísse o ministério, faria por mim alguma cousa. Um dia
prestou-me generosamente um grande obséquio. Sabendo que eu andava atrapalhado
com certa dívida, mandou-a pagar por portas travessas. Fui ter com ele, logo que
descobri a origem do favor, agradeci-lho com lágrimas nos olhos, ele meteu o caso à
bulha e acabou dizendo que não me afadigasse em arranjar-lhe o dinheiro; bastava pagar
quando ele tivesse de voltar à província, fechadas as câmaras, ou em maio que fosse.
Pouco depois, vi Henriqueta e fiquei logo namorado. Encontramo-nos algumas vezes.
Um dia recebi convite para um sarau, em casa de terceira pessoa propícia aos meus
desejos, e resolvida a fazer o que pudesse, para ver-nos ligados. Chegou o dia do sarau;
mas, de tarde, indo jantar, dei com uma novidade inesperada: Veiga, que na véspera à
noite tivera alguma dor de cabeça e calafrios, amanheceu com febre, que se fez violenta
para a tarde. Já era muito, mas aqui vai o pior. Os três deputados, amigos dele, tinham de
ir a uma reunião política, e haviam combinado que eu ficasse com o doente, e mais um
criado, até que eles voltassem, e não seria tarde.
— Você fica, disseram-me; antes da meia-noite estamos de volta.
Tentei balbuciar uma desculpa, mas nem a língua obedeceu
...
intenção, nem eles
ouviriam nada; já me haviam dado as costas. Mandei-os ao diabo, eles e os parlamentos;
depois de jantar, fui vestir-me para estar pronto, enfiei um chambre, em vez da casaca, e
fui para o quarto do Veiga. Este ardia em febre; mas, chegando eu à cama, viu ele a
gravata branca e o colete, e disse-me que não fizesse cerimônias, que não era preciso
ficar.
— Não, não vou.
— Vá, doutor; o João fica; eles voltam cedo.
— Voltam às onze horas.
— Onze que sejam. Vá, vá.
Baloucei entre ir e ficar. O dever atava-me os pés, o amor abria-me as asas. Olhei
durante alguns instantes para o doente, que jazia na cama, com as pálpebras caídas,
respirando a custo. Os outros deviam voltar à meia-noite — eu disse onze horas, mas foi
meia-noite que eles mesmos declararam — e até lá entregue a um criado.
— Vá, doutor.
— Já tomou o remédio? perguntei.
— A segunda dose é às nove e meia.
Pus-lhe a mão na testa; era uma brasa. Tomei-lhe o pulso; era um galope. Enquanto
hesitava ainda, concertei-lhe os lençóis; depois fui arranjar algumas cousas no quarto, e
afinal tornei ao doente, para dizer que iria, mas estaria cedo de volta. Abriu apenas
metade dos olhos, e respondeu com um gesto; eu apertei-lhe a mão.
— Não há de ser nada, amanhã está bom, disse-lhe saindo.
Corri a vestir a casaca, e fui para a casa onde devia achar a bela Henriqueta. Não a
achei ainda, chegou quinze minutos depois.
A noite que passei, foi das melhores daquele tempo. Sensações, borboletas fugitivas
que lá ides, pudesse eu recolher-vos todas, e pregar-vos aqui neste papel para recreio
das pessoa que me lêem! Veriam todas que não as houve nunca mais lindas, nem em
tanta cópia, nem tão vivas e lépidas. Henriqueta contava mais de um pretendente, mas
não sei se fazia com os outros o que fazia comigo, que era mandar-me um olhar de
quando em quando. Amigas dela diziam que a máxima da viúva era que os olhares das
mu ...
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