Livro: Viagem à roda de mim mesmo Página 2
Autor - Fonte: Machado de Assis
...
vesse tanto, porque vi sinal dele nas maçãs do rosto.
Entrei comovido. Não era a primeira vez que nos achávamos a sós, era a segunda;
mas a resolução que levava, agravou as minhas condições. Quando havia gente —
naquela ou noutra casa, — cabia-me o grande recurso, se não conversávamos, de ficar a
olhar para ela, fixo, de longe, em lugar onde os seus olhos davam sempre comigo. Agora,
porém, éramos sós. Henriqueta recebeu-me muito bem; disse-me estendendo a mão:
— Pensei que me deixasse ir para Petrópolis sem ver-me.
Balbuciei uma desculpa. Na verdade o calor estava apertando, e era tempo de subir.
Quando subia? Respondeu-me que no dia 20 ou 21 de dezembro, e, a pedido meu,
descreveu-me a cidade. Ouvi-a, disse-lhe também alguma cousa, perguntei se ia a certo
baile do Engenho Velho; depois veio mais isto e mais aquilo. O que eu mais temia, eram
as pausas; ficava sem saber onde poria os olhos, e se era eu que reatava a conversação,
fazia-o sempre com estrépito, dando relevo a pequenas cousas estranhas e ridículas,
como para fazer crer que não estivera pensando nela. Henriqueta às vezes tinha-me um
ar enjoado; outras, falava com interesse. Eu, certo da vitória, pensava em ferir a batalha,
principalmente quando ela parecia expansiva; mas, não me atrevia a marchar. Os minutos
voavam; bateram quatro horas, depois quatro e meia.
"Vamos, disse comigo, agora ou nunca."
Olhei para ela, ela olhava para mim; logo depois, ou casualmente, ou porque receasse
que eu lhe ia dizer alguma cousa e não quisesse escutar-me, falou-me de não sei que
anedota do dia. Abençoada anedota! âncora dos anjos! Agarrei-me a ela, contente de
escapar à minha própria vontade. Que era mesmo? Lá vai; não me recordo o que era;
lembro-me que a contei com todas as variantes, que a analisei, que a corrigi
pacientemente, até às cinco horas da tarde, que foi quando saí de lá, aborrecido, irritado,
desconsolado.
CAPÍTULO II
CRANZ, citado por Ty
...
or, achou entre os groenlandeses a opinião de que há no homem
duas pessoas iguais, que se separam às vezes, como acontece durante o sono, em que
uma dorme e a outra sai a caçar e passear. Thompson e outros, apontados em Spencer,
afirmam ter encontrado a mesma opinião entre vários povos e raças diversas. O
testemunho egípcio (antigo), segundo Maspero, é mais complicado; criam os egípcios que
há no homem, além de várias almas espirituais, uma totalmente física, reprodução das
feições e dos contornos do corpo, um perfeito fac-símile.
Não quero vir aos testemunhos da nossa língua e tradições, notarei apenas dous: o
milagre de Santo Antônio, que, estando a pregar, interrompeu o sermão, e, sem deixar o
púlpito, foi a outra cidade salvar o pai da forca, e aqueles maviosos versos de Camões:
Entre mim mesmo e mim
Não sei que se alevantou,
Que tão meu imigo sou.
Que tais versos estejam aqui no sentido figurado, é possível; mas não há prova de não
estarem no sentido natural, e que mim e mim mesmo não fossem realmente duas
pessoas iguais, tangíveis, visíveis, uma encarando a outra.
Pela minha parte, alucinação ou realidade, aconteceu-me em criança um caso desses.
Tinha ido ao quintal de um vizinho tirar umas frutas; meu pai ralhou comigo, e, de noite,
na cama, dormindo ou acordado — creio antes que acordado —, vi diante de mim a
minha própria figura, que me censurava duramente. Durante alguns dias andei aterrado, e
só muito tarde chegava a conciliar o sono; tudo eram medos. Medos de criança, é
verdade, impressões vivas e passageiras. Dous meses depois, levado pelos mesmos
rapazes, consócios na primeira aventura, senti a alma picada das mesmas esporas, e fui
outra vez às mesmas frutas vizinhas.
Tudo isso acudia-me à memória, quando saí da casa de Henriqueta, descompondo-me,
com um grande desejo de quebrar a minha própria cara. Senti-me dous, um que argüia,
outro que se desculpava. Nomes que eu nem ...
Warning: Undefined global variable $_POST in
/home4/mult6346/multiajudaromances.com.br/livro.php on line
252
Comentários:
Warning: Undefined global variable $_POST in
/home4/mult6346/multiajudaromances.com.br/livro.php on line
258
Warning: Trying to access array offset on value of type null in
/home4/mult6346/multiajudaromances.com.br/livro.php on line
258
Deixe aqui seu comentário sobre este livro: