Livro: A Inglezinha Barcelos Página 2
Autor - Fonte: Machado de Assis
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a circunstância já dita de vê-la rezar a
todos os altares. Imaginou logo, não devoção nem promessa, mas uma alma
desesperada e solitária. A situação moral, se tal era, parecia-se com a dele; não foi
preciso mais para que se inclinasse à moça, e a acompanhasse até Catumbi. A visão
tornou com ele, sentou-se à escrivaninha, aninhou-se entre o deve e o há de haver, como
uma rosa caída em moita de ervas bravias. Não é minha esta comparação; é do próprio
Caldas, que nessa mesma noite tentou um soneto. A inspiração não acudiu ao chamado,
mas a imagem da moça de Catumbi dormiu com ele e acordou com ele.
Daí em diante, o pobre Caldas freqüentou o bairro. Ia e vinha, passava muitas vezes,
espreitava a hora em que pudesse ver Joaninha, às tardes. Joaninha aparecia à janela;
mas, além de não ser já tão assídua como antes, era voluntariamente alheia à menor
sombra de homem. Não fitava nenhum; não dava sequer um desses olhares que não
custam nada e não deixam nada. Fizera-se uma espécie de freira leiga.
— Creio que ela hoje me viu, pensava consigo o guarda-livros, uma tarde, em que ele,
como de uso, passara por baixo das janelas, levantando muito a cabeça.
A verdade é que ela tinha os olhos na erva que crescia à beira da calçada, e o Caldas,
que ia passando, naturalmente entrou no campo da visão da moça; mas tão depressa ela
o viu, levantou os olhos e estendeu-os à chaminé da casa fronteira. Caldas, porém,
edificou sobre essa probabilidade um mundo de esperanças. Casariam talvez naquele
mesmo ano. Não, ainda não; faltavam-lhe meios. Um ano depois. Até lá dar-lhe-iam
interesse na casa. A casa era boa e próspera. Vieram cálculos de lucro. A contabilidade
deu o braço à imaginação, e disseram muitas coisas bonitas uma à outra; algarismos e
suspiros trabalharam em comum, tais como se fossem do mesmo oficio.
Mas o olhar não se repetiu naqueles dias próximos, e o desespero entrou na alma do
guard
-livros.
A situação moral deste agravou-se. Os versos entraram a cair entre as contas, e os
dinheiros entrados nos livros da casa mais pareciam sonetos que dinheiro. Não é que o
guarda-livros os escriturasse em verso; mas alternava as inspirações com os
lançamentos, e o patrão, um dia, foi achar entre duas páginas de um livro um soneto
imitado de Bocage. O patrão não conhecia esse poeta nem outro, mas conhecia versos e
sabia muito bem que não havia entre os seus devedores nenhum
Lírio do céu, lírio caído em terra.
Perdoou o caso, mas entrou a observar o empregado. Este, por sua desgraça, ia de mal a
pior. Um dia, quando menos esperava, disse-lhe o patrão que procurasse outra casa. Não
lhe deu razões; o pobre-diabo, aliás tímido, tinha certo orgulho que lhe não permitiu ficar
mais tempo e saiu logo.
Não há mau poeta, nem guarda-livros relaxado que não possa amar deveras; nem ruins
versos tiraram jamais a sinceridade de um sentimento ou o fizeram menos forte. A paixão
deste pobre moço desculpará os seus desazos comerciais e poéticos. Ela o levou por
descaminhos inesperados; fê-lo passar crises tristíssimas. Tarde achou um mau emprego.
A necessidade fê-lo menos assíduo em Catumbi. Os empréstimos eram poucos e
escassos; por muito que ele cortasse a comida (morava com um amigo, por favor), não
lhe davam sempre para os colarinhos imaculados, nem as calças são eternas. Mas essas
ausências longas não tiveram o condão de abafar ou atenuar um sentimento que, por
outro lado, não era alimentado pela moça; novo emprego melhorou um tanto a situação
do namorado. Voltou a ir lá mais vezes. Era fim do verão, as tardes tendiam a diminuir, e
pouco tempo lhe restaria delas para dar um pulo a Catumbi. Com o inverno cessaram os
passeios; Caldas desforrava-se aos domingos.
Não me pergunteis se tentou escrever a Joaninha; tentou, mas as cartas ficavam-lhe na
algibeira; eram depois reduzidas a verso, para suprir as la
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