Livro: A Inglezinha Barcelos
Autor - Fonte: Machado de Assis
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LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
A Inglezinha Barcelos, de Machado de Assis
Edição referência: http://www2.uol.com.br/machadodeassis
Publicado originalmente em A Estação 1894
Eram trintonas. Cândida era casada, Joaninha solteira. Antes deste dia de março de
1886, viram-se pela primeira vez em 1874, em casa de uma professora de piano. Quase
iguais de feições, que eram miúdas, meãs de estatura, ambas claras, ambas alegres,
havia entre elas a diferença dos olhos; os de Cândida eram pretos, os de Joaninha azuis.
Esta cor era o encanto da mãe de Joaninha, viúva do capitão Barcelos, que lhe chamava
por isso “. — Como vai a sua inglesa? perguntavam-lhe as pessoas que a queriam
lisonjear. E a boa senhora ria-se d’água, Joaninha não viu morte física nem moral; não
achou meio de fugir a este mundo, e contentou-se com ele. Da crise, porém, nasceu uma
situação moral nova. Joaninha conformou-se com o celibato, abriu mão de esperanças
inúteis, compreendeu que estragara a vida por suas próprias mãos.
— Acabou-se a inglesinha Barcelos, disse consigo, resoluta.
E de fato, a transformação foi completa. Joaninha recolheu-se a si mesma e não quis
saber de namoros. Tal foi a mudança que a própria mãe deu por ela, ao cabo de alguns
meses. Supôs que ninguém já aparecia; mas em breve reparou que ela própria não saía à
porta do castelo para ver se vinha alguém. Ficou triste, o desejo de vê-la casada não
chegaria a cumprir-se. Não viu remédio próximo nem remoto; era viver e morrer, e deixála
neste mundo, entregue aos lances da fortuna.
Ninguém mais falou na inglesinha Barcelos. A namoradeira passou de moda. Alguns
rapazes ainda lhe deitavam os olhos; a figura da moça não perdera a graça dos
dezessete anos, mas nem passava disso, nem ela os animava a mais. Joaninha fez-se
devota. Começou a ir à igreja mais vezes que dantes; à missa ou só orar. A mãe não lhe
negava nada.
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Talvez pense em pegar-se com Deus, dizia ela consigo; há de ser alguma promessa.
Foi por esse tempo que lhe apareceu um namorado, o único que verdadeiramente a
amou, e queria desposá-la; mas tal foi a sorte da moça, ou o seu desazo, que não chegou
a falar-lhe nunca. Era um guarda-livros, Arsênio Caldas, que a encontrou uma vez na
igreja de S. Francisco de Paula, onde fora ouvir uma missa de sétimo dia. Joaninha
estava apenas orando. Caldas viu-a ir de altar em altar, ajoelhando-se diante de cada um,
e achou-lhe um ar de tristeza que lhe entrou na alma. Os guarda-livros, geralmente, não
são romanescos, mas este Caldas era-o, tinha até composto, entre dezesseis e vinte
anos, quando era simples ajudante de escrita, alguns versos tristes e lacrimosos, e um
breve poema sobre a origem da lua. A lua era uma concha, que perdera a pérola, e todos
os meses abria-se toda para receber a pérola; mas a pérola não vinha, porque Deus, que
a achara linda, tinha feito dela uma lágrima. Que lágrima? A que ela verteu um dia, por
não vê-lo a ele. Que ele e que ela? Ninguém; uma dessas paixões vagas, que atravessam
a adolescência, como ensaios de outras mais fixas e concretas. A concepção, entretanto,
dava idéia da alma do rapaz, e a imaginação, se não extraordinária, mal se podia crer que
viçasse entre o diário e a razão.
Com efeito, este Caldas era sentimental. Não era bonito, nem feio, não tinha expressão.
Sem relações, tímido, vivia com os livros durante o dia, e à noite ia ao teatro ou a algum
bilhar ou botequim. Via passar mulheres; no teatro, não deixava de as esperar no saguão;
depois ia tomar chá, dormia e sonhava com elas. Às vezes, tentava algum soneto,
celebrando os braços de uma, os olhos de outra, chamando-lhes nomes bonitos, deusas,
rainhas, anjos, santas, mas ficava nisso.
Contava trinta e um anos, quando sucedeu ver a inglesinha Barcelos na igreja de S.
Francisco. Talvez não fizesse nada, se não fosse ...
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