Livro: Luneta Mágica Página 3
Autor - Fonte: Joaquim Manuel de Macedo
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e a dedicação do mano é
mais suave do que ele diz.
A primeira vez que me confessar hei de perguntar ao padre, se Deus abençoa tais
dedicações fraternais; é este um ponto que deve ser esclarecido para que seja mais doce a
submissão dos irmãos míopes.
7
V
Minha tia também me faz ouvir consolações, e sempre conforme as suas idéias
religiosas.
Para ela a minha miopia física é um imenso beneficio da providência, que assim
menos exposto me deixou às tentações do diabo, que ataca o pecador pelos olhos; e a minha
miopia moral ainda mais precioso dom, porque dos pobres de espírito é o reino do céu.
A lógica piedosa da tia Domingas seria capaz de levá-la a rezar para que eu me
tornasse surdo, mudo e paralítico a fim de ser completa a minha bem-aventurança na terra.
Em conseqüência deste receio nunca disse amém às consolações místicas de minha
tia.
Ainda tenho uma terceira fonte de consolações; essa, porem, ao menos é mais
poética.
A prima Anica é perdida pelos apólogos; quando pode explicar-se por meio deles,
não se explica de outro modo: o apólogo é o seu capricho de moça.
Além disso ninguém como ela se empenha tanto e mais habilmente em agradar-me;
sabendo que quase não vivo pelos olhos, procura recomendar-se, açucarando a voz, e usando
de perfumes suavíssimos.
As vezes e quando tem ocasião faz-me também ouvir apólogos.
Um dia em que como de costume lastimava a minha desdita, que então nem me
deixava distinguir as flores do jardim, onde ambos passeávamos, colheu ela duas flores, uma
rosa d\'Alexandria, e uma angélica, e deu-mas para que eu as reconhecesse.
Aproximei muito dos olhos as duas flores para apreciar suas cores e um espinho da
rosa feriu-me a ponta do nariz, e aí ficou preso.
—Repara no que te ensina a rosa, disse Anica; repara e compreende quanto te pode
aproveitar a miopia: as flores que mais almejas distinguir e admirar não são as do nosso
jardim, são as que enfeitam e e
...
chem de magia os salões das sociedades, que não freqüentas,
são as jovens formosas com que sonhas em sonhos doidos de amor ainda mais doido; essas,
porém, assemelham-se à rosa d\'Alexandria, tem espinhos que te despedaçariam o coração.
Anica interrompeu-se por breves instantes para suspirar; eu ouvi o suspiro, e ia
perguntar-lhe, na minha simplicidade, se estava incomodada, quando ela continuou, dizendo:
—Contenta-te, pois, com a angélica que é suave ao tacto e que te pode embalsamar a
vida do retiro com o perfume do amor e da virtude.
Fiquei mudo: tinha compreendido o apólogo apesar da minha miopia moral.
Anica faz talvez um esforço para vencer o pudor e perguntou-me:
—Sabes quem é a angélica?.
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Instintivamente me fingi mais pobre de espírito do que sou, e respondi perguntando:
—A angélica? pois não é aquela flor que me deste?.
Deixamos o jardim: eu saia dele com um espinho de roseira na ponta do nariz, e
Anica provavelmente com o espinho da minha indiferença no seio.
Senti que chegara a ser cruel; mas eu nem sabia se Anica era bonita ou feia; porque
nunca pudera ver-lhe distintamente o rosto: se fosse bonita não seria o seu amor a mais doce
consolação para mim?
Tive uma idéia inspirada metade pela gratidão, metade pela curiosidade maliciosa, a
idéia de ver se Anica era bonita ou feia, se me seria possível amá-la. Chegando à sala,
sentei-me e pedi à prima que me tirasse o espinho da ponta do nariz.
A inocente moça prestou-se a fazer a fácil operação: armou-se da tesoura mais
delicada que achou, com os macios dedos da mão esquerda segurou-me o nariz, com a mão
direita dirigiu a ponta da tesoura, e cuidadosamente ocupada em extrair-me o espinho, chegou
seu rosto tão perto dos meus olhos que mais não era possível.
Durante três ou quatro minutos vi, distingui, apreciei suficientemente o rosto de
Anica. não era o rosto com que eu sonhava, não era o das descrições das heroinas dos
romances que ...
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