Livro: Luneta Mágica
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Autor - Fonte: Joaquim Manuel de Macedo
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Joaquim Manuel de Macedo
PRIMEIRA PARTE
INTRODUÇÃO
I
Chamo-me Simplício e tenho condições naturais ainda mais tristes do que o meu
nome.
Nasci sob a influência de uma estrela malígna, nasci marcado com o selo do
infortúnio.
Sou míope; pior do que isso, duplamente míope míope, física e moralmente.
Miopia física: — a duas polegadas de distância dos olhos não distingo um girassol de
uma violeta.
E por isso ando na cidade e não vejo as casas.
Miopia moral:—sou sempre escravo das idéias dos outros; porque nunca pude ajustar
duas idéias minhas.
E por isso quando vou às galerias da câmara temporária ou do senado, sou
consecutiva e decididamente do parecer de todos os oradores que falam pró e contra a matéria
em discussão.
Se ao menos eu não tivesse consciência dessa minha miopia moral!. mas a
convicção profunda de infortúnio tão grande é a única luz que brilha sem nuvens no meu
espírito
Disse-me um negociante meu amigo que por essa luz da consciência represento eu a
antítese de não poucos varões assinalados que não tem dez por cento de capital da inteligência
que ostentam, e com que negociam na praça das coisas publicas.
—Mas esses varões não quebram, negociando assim?. perguntei-lhe.
—Qual! são as coisas públicas que andam ou se mostram quebradas.
—E eles?.
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—Continuam sempre a negociar com o crédito dos tolos, e sempre se apresentam
como boas firmas.
Na cândida inocência da minha miopia moral não pude entender se havia
simplicidade ou malícia nas palavras do meu amigo.
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II
Aos doze anos de idade achei-me no mundo órfão de pai e de mãe.
Eu estava acostumado a ver pelos olhos de minha mãe, a pensar pela inteligência de
meu pai; fiquei, pois, nas trevas dos olhos e da razão.
Meus pais eram ricos, e deviam deixar-me, deixaram-me por certo, avultada fortuna;
quanto, não sei: meu irmão mais velho que tomou conta dos meus bens, minha tia Domingas
que tomou conta da minha
...
pessoa, e minha prima Anica que se criou comigo e que é um
talento raro, pois até aprendeu latim, hão de saber disso melhor do que eu.
Dizem eles que a minha fortuna vai a vapor, ignoro se para trás se para diante,
porque os barcos e carros a vapor avançam e recuam à custa do gás impulsor; mas o meu
amigo negociante declarou-me que por certas razões que não compreendo, nas quais, também
não sei porque, entra a pessoa da prima Anica, devo confiar muito no zelo da tia Domingas.
E eu confio nela o mais possível; porque é uma senhora que anda sempre de rosário e
em orações e que tendo alguma coisa de seu, apesar de tão religiosa, não deu nem dá um
vintém de esmola ao pobre que lhe bate à porta, pretextando sempre que tem muita vontade de
fazer esmolas evangélicas; porem que ainda não achou meio de esconder da mão esquerda o
óbulo da caridade pago pela mão direita.
Estou tão profundamente convencido da pureza dos sentimentos religiosos da tia
Domingas, que desde que ela tomou conta de mim, vivo em sustos de que algum dia a piedosa
senhora mande amputar a mão esquerda para conseguir dar esmolas com a mão direita,
conforme o preceito evangélico de que em sua santa severidade não quer prescindir.
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III
Aos dezoito anos de idade comecei a compreender todas as proporções da minha
desgraça dupla: chorei, lastimei-me, pedi médicos para os meus olhos, e mestres para minha
inteligência.
A força de muito rogar e bradar consegui que me dessem uns e outros.
Os mestres ganharam o seu dinheiro e eu quase que perdi todo o meu tempo com
eles; porque bem pouco lucrei no empenho de combater a minha miopia moral.
O mais hábil dos meus professores declarou-me no fim de quatro anos que um
mancebo tão rico de cabedais como eu era, podia bem reputar-se literato de avantajado
merecimento, sabendo ler, escrever e as quatro espécies da aritmética.
Convencido sempre que só me diziam a verdade, e tendo conseguido saber, aos vinte ...
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