Livro: A chave Página 2
Autor - Fonte: Machado de Assis
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, de mimo e desconfiança. Há olhares dela que
atraem, outros que distanciam — uns que inundam a gente, como um bálsamo, outros
que penetram como uma lâmina. É desta última maneira que ela olha para um grupo de
duas moças, que estão à porta de outra barraca, a falar com um sujeito.
— Lambisgóias! murmura entre dentes.
— Que é? pergunta o pai de Marcelina, o major Caldas, sentado ao pé da barraca, numa
cadeira que o moleque lhe leva todas as manhãs.
— Que é o quê? diz a moça.
— Tu falaste alguma cousa.
— Nada.
— Estás com frio?
— Algum.
— Pois olha, a manhã está quente.
— Onde está o José?
O José apareceu logo; era o moleque que a acompanhava ao mar. Aparecido o José,
Marcelina caminhou para o mar, com um desgarro de moça bonita e superior. Da outra
barraca tinham já saído as duas moças, que lhe mereceram tão desdenhosa
classificação; o rapaz que estava com elas também entrara no mar. Outras cabeças e
bustos surgiram da água, como um grupo de delfins. Da praia alguns olhos, puramente
curiosos, se estendiam aos banhistas ou cismavam puramente contemplando o petáculo
das ondas que se dobravam e desdobravam — ou, como diria o major Caldas — as
convulsões de Anfitrite.
O major ficou sentado a ver a filha, com o Jornal do Commercio aberto sobre os joelhos;
tinha já luz bastante para ler as notícias; mas não o fazia nunca antes de voltar a filha do
banho. Isto por duas razões. Era a primeira a própria afeição de pai; apesar da confiança
na destreza da filha, receava algum desastre. Era a segunda o gosto que lhe dava
contemplar a graça e a habilidade com que Marcelina mergulhava, bracejava ou
simplesmente boiava "como uma náiade", acrescentava ele se falava disso a algum
amigo.
Acresce que o mar naquela manhã estava muito mais bravio que de costume; a ressaca
era forte; os buracos da praia mais fundos; o medo afastava vários banhistas habituais.
— Não te demores muito, di
...
se o major, quando a filha entrou; toma cuidado.
Marcelina era destemida; galgou a linha em que se dava a arrebentação, e surdiu fora
muito naturalmente. O moleque, aliás bom nadador, não rematou a façanha com igual
placidez; mas galgou também e foi surgir ao lado da sinhá-moça.
— Hoje o bicho não está bom, ponderou um banhista ao lado de
Marcelina, um homem maduro, de suíças, ar aposentado.
— Parece que não, disse a moça; mas para mim é o mesmo.
— O major continua a não gostar d’água salgada? perguntou uma senhora.
— Diz que é militar de terra e não do mar, replicou Marcelina, mas eucreio que papai o
que quer é ler o Jornal à vontade.
— Podia vir lê-lo aqui, insinuou um rapaz de bigodes, dando uma grande risada de
aplauso a si mesmo.
Marcelina nem olhou para ele; mergulhou diante de uma onda, surdiu fora, com as mãos
sacudiu os cabelos. O sol, que já então aparecera, alumiava-a nessa ocasião, ao passo
que a onda, seguindo para a praia, deixava-lhe todo o busto fora de água. Foi assim que
a viu, pela primeira vez, com os cabelos úmidos, e a flanela grudada ao busto — ao mais
correto e virginal busto daquelas praias —, foi assim que pela primeira vez a viu o
Bastinhos — o Luís Bastinhos —, que acabava de entrar no mar, para tomar o primeiro
banho no Flamengo.
CAPÍTULO II
A ocasião é a menos própria para apresentar-lhes o sr. Luís Bastinhos; a ocasião e o
lugar. O vestuário então é impropriíssimo. Ao vê-lo agora, a meio-busto, nem se pode
dizer que tenha vestuário de nenhuma espécie. Emerge-lhe a parte superior do corpo,
boa musculatura, pele alva, mal coberta de alguma penugem. A cabeça é que não precisa
dos arrebiques da civilização para dizer-se bonita. Não há cabeleireiro, nem óleo, nem
pente, nem ferro que no-la ponham mais graciosa. Ao contrário, a pressão fisionômica de
Luís Bastinhos acomoda-se melhor a esse desalinho agreste e marítimo. Talvez perca,
quando ...
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