Livro: Aurora sem dia Página 2
Autor - Fonte: Machado de Assis
...
Com os olhos pregados no padrinho, Luís Tinoco parecia querer adivinhar as
impressões que produziam nele os seus elevados conceitos, metrificados com todas as liberdades
possíveis do consoante. Anastácio acabou de ler os versos e fez com a boca um gesto de enfado.
– Isto não tem graça, disse ele ao afilhado estupefato; que diabo tem a lua com a
indiferença dessa moça, e a que vem aqui a morte deste estrangeiro?
Luís Tinoco teve vontade de descompor o padrinho, mas limitou-se a atirar os cabelos para
trás e a dizer com supremo desdém:
– São coisas de poesia que nem todos entendem, esses versos sem graça, são meus.
– Teus? perguntou Anastácio no cúmulo do espanto.
– Sim, senhor.
– Pois tu fazes versos?
– Assim dizem.
– Mas quem te ensinou a fazer versos?
– Isto não se aprende; traz-se do berço.
Anastácio leu outra vez os versos, e só então reparou na assinatura do afilhado. Não havia que
duvidar: o rapaz dera em poeta. Para o velho aposentado era isto uma grande desgraça. Esse, ligava
à idéia de poeta a idéia de mendicidade.
Tinha-lhe pintado Camões e Bocage, que eram os nomes literários que ele conhecia, como
dois improvisadores de esquina, espeitorando sonetos em troca de algumas moedas, dormindo nos
adros das igrejas e comendo nas cocheiras das casas grandes. Quando soube que o seu querido Luís
estava atacado da terrível moléstia, Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com
o Dr. Lemos e lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado.
– Dou-lhe parte de que o Luís está poeta.
– Sim? perguntou-lhe o Dr. Lemos. E que tal lhe saiu o poeta?
– Não me importa se saiu mau ou bom. O que sei é que é a maior desgraça que lhe podia
acontecer, porque isto de poesia não dá nada de si. Tenho medo que deixe o emprego, e fique aí
pelas esquinas a falar à lua, cercado de moleques.
O Dr. Lemos tranqüilizou o homem, dizendo-lhe que os poetas não eram esses vadio
que ele
imaginava; mostrou-lhe que a poesia não era obstáculo para andar como os outros , para ser
deputado, ministro ou diplomata.
– No entanto, disse o Dr. Lemos, desejarei falar ao Luís; quero ver o que ele tem feito,
porque como eu também fui outrora um pouco versejador, posso saber se o rapaz dá de si.
Luís Tinoco foi ter com ele; levou-lhe o soneto e a ode impressos, e mais algumas produções
não publicadas. Estas orçavam pela ode ou pelo soneto. Imagens safadas, expressões comuns,
frouxo alento e nenhuma arte; apesar de tudo isso, havia de quando em quando algum lampejo que
indicava da parte do neófito propensão para o mister; podia ser ao cabo de algum tempo um
excelente trovador de salas.
O Dr. Lemos disse-lhe com franqueza, que a poesia era uma arte difícil e que pedia longo
estudo; mas que, a querer cultivá-la a todo o transe, devia ouvir alguns conselhos necessários.
– Sim, respondeu ele, pode lembrar alguma coisa; eu não me nego a aceitar-lhe o que me
parecer bom, tanto mais que eu fiz estes versos muito à pressa e não tive ocasião de os emendar.
– Não me parecem bons estes versos, disse o Dr. Lemos; poderia rasgá-los e estudar
antes algum tempo.
Não é possível descrever o gesto de soberbo desdém com que Luís Tinoco arrancou os versos
ao doutor e lhe disse:
– Os seus conselhos valem tanto como a opinião de meu padrinho. Poesia não se
aprende; traz-se do berço. Eu não dou atenção a invejosos. Se os versos não fossem bons, o
Mercantil não os publicava.
E saiu.
Daí em diante foi impossível ter-lhe mão.
Tinoco entrou a escrever como quem se despedia da vida. Os jornais andavam cheios de
produções suas, umas tristes, outras alegres, não daquela tristeza nem daquela alegria que vem
diretamente do coração, mas de uma tristeza que fazia sorrir, e de uma alegria que fazia bocejar.
Luís Tinoco confessava singelamente ao mundo que fora invadido do cepticismo byroniano, que
tragara até
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