Livro: Água de juventa Página 2
Autor - Fonte: COELHO NETTO
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como um amortalhado que se recolhesse
precipitadamente ao túmulo antes do esplendor da
manhan, corria, embrulhado em comprido lençol,
tintando ; esse, aos pulinhos, arrimado a muletas
toscas, lá ia para o atascadeiro ; aquelle, com uma
criança ao collo, animando-a carinhosamente,
seguia, descalço, pela herva molhada ; e todos, á
beira do paul vital, pendurando as roupas nos ramos
das arvores, sem vexame, naturalmente, desciam
ao
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lodo, chafurdavam, banhavam as feridas,
esfregavam as ulceras esborcinadas, raspavam as
escaras da lepra, friccionavam as articulações
ankylosadas e ficavam no atascal até que a luz
aclarava, atoalhando d\'ouro os lombos das collinas,
o campo em flor e, de um a outro no marnel, eram
felicitações por melhoras que se iam accentuando.
O sol irradiava, fugiam lentas, dissolvendo-se, as
ultimas neblinas e, de todos os pontos, rompiam
vozes d\'animaes : mugidos dos bois de carro, que
engordavam, soltos, afogados na herva ; balados de
ovelhas, latidos dos cães, que farejavam rastos de
caça.
Tiros estrondavam, com grandes ecos reboantes
rolando pelas quebradas ; campeiros bradavam — e
eram galopes desabridos de potros, montados em
pêllo, algazarra de crianças, gritos assustados de
mulheres, que bracejavam, acenando aos filhos,
chamando-os, reprehendendo-os, com receio de que
fossem cuspidos pelos animaes naquellas correrias
loucas.
Ali mesmo, numa aberta do matto, perto da
povoação agreste, eram as rezes abatidas e
escorchadas. As bandounas, apodrecendo em
acervos, attrahiam os tirubus, e, emquanto,
acolhidas aos ranchos, á volta dos caldeirões
fumegantes, as familias comiam, falando das terras
longinquas que habitavam na orla branca do mar ou
nos ricos convalles de mineração, os abutres
disputavam o deventre das rezes, brigando,
esvoaçando rasteiros ou fugindo aos cães, em vôo
alto, com um tassalho de carniça pendente do bico.
Os mais favorecidos acudiam aos p
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bres, man10
ÁGUA DE JUVENTA
davam-lhes presentes — eram gordas postas de carne,
gallinhas, cestinhos d\'ovos, frutas, remedios e, quando
partiam, faziam uma larga distribuição de generos, de
roupas ; espalhavam esmolas em dinheiro, concorriam
com avultados donativos para a construcção da igreja e,
com as muletas debaixo do braço, subiam ao outeiro e lá
as deixavam, fincadas entre pedras, attestando o milagre.
Á noite, em volta das fogueiras, as violas soavam
languidas, trovas cruzavam-se e o solo estrupidava ao
sapatear frenetico do samba, até á hora da reza. Era,
então, o terço, cantado de tenda em tenda, ou, nas noites
de luar, todos juntos, em circulo.
B na floresta as onças urravam olhando espantadas os
fogareus vigilantes e o pântano milagroso começava a
fumegar, velando-se de nevoa densa ; e affirmava-se
supersticiosamente que, em certas noites aziagas, a horas
altas, chammas subiam tremulas, em línguas lividas,
desprendiam-se e ficavam pairando e ardendo no ar ;
depois empallideciam, minguavam e subitamente
extinguiam-se.
Os mais tímidos, preferindo o soffrimento ephemero
do corpo á eterna tortura d\'alma, como attribuiam o calor
d\'aquellas aguas a virem ellas directamente do inferno,
deixavam-se ficar nas choças repassando as contas dos
rosarios e, como o clima benefico bastava, para lhes
abrandar os males, sentindo-se alliviados, davam-se por
attendidos pelo Senhor e regressavam aos lares contentes,
espalhando lendas tragicas sobre demonios e pallidas
apparições e ensinando pelos povoados humildes as
sympathias e as rezas a cuja efficacia attribuiam o
restabelecimento.
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Com as noticias das curas milagrosas logo cresceu a
ambição e com ella foram acudindo ao ermo logarejo os
primeiros habitantes. Fincaram-se esteios solidos,
atravessaram-se, cruzaram-se robustas vigas, as colunas
foram escavacadas, o adobe foi espalhado era estendal, ao
sol. Correram-se muros de taipa, abrira ...
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