Livro: Relíquias da Casa Velha
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Autor - Fonte: Machado de Assis
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Machado de Assis
Advertência
Uma casa tem muita vez as suas relíquias, lembranças de um dia ou de outro, da tristeza
que passou, da felicidade que se perdeu. Supõe que o dono pense em as arejar e expor para teu e
meu desenfado. Nem todas serão interessantes, não raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver
cuidado, pode extrair uma dúzia delas que mereçam sair cá fora.
Chama-lhe à minha vida uma casa, dá o nome de relíquias aos inéditos e impressos que
aqui vão, idéias, histórias, críticas, diálogos, e verás explicados o livro e o título. Possivelmente
não terão a mesma suposta fortuna daquela dúzia de outras, nem todas valerão a pena de sair cá
fora. Depende da tua impressão, leitor amigo, como dependerá de ti a absolvição da má escolha.
Machado de Assis
A Carolina
Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.
Trago-te flores – restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.
Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
PAI CONTRA MÃE
A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições
sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao
pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia
perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para
ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber,
perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com
que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a
...
obriedade e a honestidade certas. Era
grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e
alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não
cuidemos de máscaras.
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a
haste grossa também, à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave.
Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que
andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam
da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar
pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o
mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque
dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o
escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo1, deitava a correr, sem conhecer as ruas
da cidade. Dos que seguiam para casa, não raros, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes
marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha
anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o
tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha
promessa: "gratificar-se-á generosamente", — ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o
anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao
ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoitasse.
Ora, pegar escravos fugidos era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser
instrumento da força com que se mantêm a le ...
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