Livro: Antes do Entardecer Página 3

... o pelo que poderia ter sido, mas que nunca fora de verdade. E de volta à minha seqüência de jazz, blues, country music ou qualquer outro gênero que constituísse um bom rock. Além de Joni Mitchell, claro. Não precisamos seguir uma seqüência pronta na KCAS. Podemos tocar o que gostamos de ouvir, o que é muito bom, pois essa livre escolha não costuma ser comum no mundo das rádios. Tanto as pessoas que não me conhecem muito bem, quanto as que não me conhecem de jeito nenhum, e que ficam sabendo o que faço para ganhar a vida, comentam que trabalho de sonho é esse meu. A verdade é que, mesmo quando meu carro de terceira mão está funcionando, o teto do estúdio não tem goteiras, a cabine onde trabalho não cheira a mofo por causa do carpete úmido e eu imagino estar apaixonada por alguém só porque um ano atrás ele colocou meu nome em uma música que escreveu, estou longe de ter uma vida de sonho. Ser disc-jóquei, mesmo em uma rádio de sucesso, não é o emprego que todo mundo pediu a Deus. Além disso, em meio às 158 emissoras de Los Angeles, somos a de número 156. A qualquer momento, a KCAS pode se tornar uma rádio automatizada, como os donos vêm ameaçando desde que entrei aqui. Mesmo com autonomia, não contamos com nenhuma segurança. Há muita gente pronta para tomar nosso emprego lá fora. Gente que conhece bandas das quais ainda nem se ouviu falar, capaz de fazer piadinhas ao microfone com a maior destreza do mundo e, claro, pôr um CD para tocar com tanta habilidade quanto qualquer um daqui. Sem dizer que, para um "trabalho de sonho", o salário não compensa. Já ganhei mais trabalhando como garçonete e como recepcionista em um estúdio de gravação, onde conheci o produtor que, na ocasião, era diretor de programação aqui da KCAS. Foi ele quem me convenceu de que, além das lindas pernas, eu tinha uma voz rouca e sexy. perfeita para o rádio. Tive esperanças de que o homem estivesse se referindo às gravações da minha ban ...

a de garagem, mas o que ele queria mesmo era uma disc-jóquei. Chegamos a sair juntos umas duas vezes, mas logo depois ele foi trabalhar como programador, por um salário melhor, claro, e eu fiquei aqui, onde estou faz quatro anos. Muita gente me pergunta, principalmente meus primos em Cleveland, por que não arranjo um trabalho melhor ou um relacionamento decente. Afinal, já cheguei aos trinta. Como se isso fosse fácil. Certo, deixe-me ir até a loja de conveniência mais próxima atrás de um pacote de batatinhas, uma coca, um emprego bem pago com perspectivas para o futuro, um marido e, claro, uns três filhos para começar. O problema é que sou inquieta demais para sossegar, ou para desistir, que seja. Ainda me sinto atraída por causas perdidas: a carreira de cantora que nunca tive, as baladas românticas que compus, sem nunca ter encontrado um produtor disposto a lançá-las no mercado fonográfico, os casos com músicos egocêntricos e semiprofissionais. E o fato de ainda sentir o mesmo friozinho na espinha no momento em que se acendem as letras vermelhas da cabine: NO AR. Assim, "quase" satisfeita, dou início à minha cantilena diária: — Você está ouvindo a KCAS, 101.3 FM, Los Angeles. Aqui é Jessie Adams, com você até o final desta tarde chuvosa. E, mais uma vez, o meu universo entra em equilíbrio. Talvez este emprego não seja exatamente um degrau para a minha sonhada carreira musical, e tampouco ofereça um futuro sólido como o dos corretores de bolsa. Também não há garantias no que tange ao amor. Mas, às vezes, a gente só precisa se deixar levar pelas baladas da vida e confiar que tudo dará certo no fim. Meu ônibus se arrastou pelo tráfego intenso da hora do rush, no bulevar Santa Monica, passando por duas vitrines repletas de sapatos caríssimos, na frente das quais as pessoas se moviam, apressadas, algumas carregando as sacolas de compras sobre as cabeças. Virou na Lincoln, onde lojas de produtos naturais e academias de ...

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