Livro: Antes do Entardecer Página 2

... ica é uma prova do que eu acabei de dizer. — Do quê? Do dilúvio?. — Não. De que ainda não se acostumou com a idéia de ter entrado nos trinta. Anda piegas demais! Um relacionamento estável lhe faria muito bem. — Um relacionamento estável não teve esse mesmo efeito em você. Theodore me encarou. Alisei os cabelos molhados, agora tão arrepiados quanto os de Bete Midler imitando Janis Joplin em A Rosa. — Ainda está saindo com o baterista? — Ele tocava guitarra. O baterista foi há dois anos. Seguidos de seis meses de puro celibato, pensei. Um verdadeiro recorde. — Tocava?. Mantive os olhos castanhos, descritos como dourados nos momentos românticos, longe do olhar inquisitivo de Theo. Eu devia aprender a ficar calada, em vez de espalhar aos sete ventos com quem saio ou deixo de sair. A canção entoada por Richard Harris chegava agora a um crescendo: Someone left the cake out in the rain. Visualizei a lama e a água, comuns em fevereiro, fechando estradas, pondo telhados abaixo, abalando alicerces e inundando os baixios de Hollywood Hills e Pacific Palisades, provocando ondas que nenhum surfista ousaria pegar. Em comparação a problemas como esses, romper com um sujeito que eu mal havia beijado desde o dia de Ação de Graças não parecia muita coisa. Finalmente encarei meu colega. — Pois é. Estou solteira outra vez. Theo me deu um tapinha no ombro. — Mais um pouco e vai formar uma banda. Podia chamá-la de "Os Ex", que tal? Primeiro foi o vocalista, logo que começou a trabalhar aqui. Lembro muito bem: ainda estava curtindo a maior dor-de-cotovelo. Depois, veio o sujeito da flauta, o baterista, e agora um que toca guitarra. Falta o do baixo. Ri com tanto entusiasmo quanto podia. Theo comentou qualquer coisa sobre uma goteira no estúdio e me deixou a sós na cabine com meus pensamentos. Fazia apenas uma semana que eu e Jack, o guitarrista, havíamos estado, debaixo de chuva, ao lado do meu carro que se recusava a pegar. At ...

� então, eu ainda imaginava que fôssemos um casal. Jack segurava o guarda-chuva. As gotas respingavam suas botas de cowboy, os jeans de grife, a parca do tipo esqui fechada no pescoço. Ele, porém, não parecia nem um pouco molhado. Ao contrário de mim, que já começava a tremer sob a jaqueta de couro nada adequada para um tempo daqueles, enquanto tentava descobrir o que acontecia com o carro. Só sei que, em determinado momento, percebi que Jack já não prestava atenção ao problema. Muito menos ao fato de já quase ter me deixado sob a chuva. — Jessie, eu gosto muito de você. Eu, idiota, ergui a cabeça para fitar aqueles olhos azuis e o rosto emoldurado por cabelos claros e longos, totalmente disposta a esquecer as dúvidas que tinham me assaltado durante os últimos quatro meses, enquanto ele estivera em turnê com a banda. Jack era profissional e dedicado, e tinha um jeito tão especial de olhar para mim enquanto tocava. Já tinha quase me esquecido daquele olhar. Havia semanas nos falávamos apenas por meio de mensagens deixadas nos celulares. — Eu sei — respondi com um sorriso. — Jessie. — Ele me segurou pelo braço. — Conheci uma garota, outro dia. Foi o bastante para eu me erguer e sair de vez da proteção do guarda-chuva. — Jessie, por favor. — Jack bateu o capo do carro e me seguiu até o ponto de ônibus. E eu ali, me culpando por ter tido dúvidas a respeito do infeliz. Devia mais era tê-lo dispensado antes que ele partisse para aquela maldita turnê. E antes de ter-lhe emprestado quinhentos dólares que, agora, duvidava pudesse receber de volta! — Jessie, não fique assim. Só estou sendo honesto! O ônibus parou com um guinchado e, para meu imenso prazer, lançou uma onda de água suja sobre o jeans caro que ele usava. Jack estacou e abriu as mãos, em choque, fazendo uma cara de nojo ao ver um chiclete grudado na bota. Caí na risada. A vida era justa, às vezes. Agora ali estava eu: dando meu último suspir ...

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