Livro: Ubirajara Página 2
Autor - Fonte: José de Alencar
...
dos cronistas
citados nas notas seguintes não se deixem impressionar por suas apreciações
muitas vezes ridículas. É indispensável escoimar o fato dos comentos de que vem
acompanhado, para fazer uma idéia exata dos costumes e índole dos selvagens.
O CAÇADOR
Pela margem do grande rio caminha Jaguarê, o jovem caçador. O arco
pende-lhe ao ombro, esquecido e inútil. As flechas dormem no coldre da uiraçaba.
Os veados saltam das moitas de ubaia e vêm retouçar na grama, zombando
do caçador.
Jaguarê não vê o tímido campeiro, seus olhos buscam um inimigo capaz de
resistir-lhe ao braço robusto.
O rugido do jaguar abala a floresta; mas o caçador também despreza o
jaguar, que já cansou de vencer.
Ele chama-se Jaguarê, o mais feroz jaguar da floresta; os outros fogem
espavoridos quando de longe o pressentem.
Não é esse o inimigo que procura, porém outro mais terrível para vencê-lo em
combate de morte e ganhar nome de guerra.
Jaguarê chegou à idade em que o mancebo troca a fama do caçador pela
glória do guerreiro.
Para ser aclamado guerreiro por sua nação é preciso que o jovem caçador
conquiste esse título por uma grande façanha.
Por isso deixou a taba dos seus e a presença de Jandira, a virgem formosa
que lhe guarda o seio de esposa.
Mas o sol três vezes guiou o passo rápido do caçador através das campinas,
e três vezes como agora deitou-se além nas montanhas da Aratuba, sem mostrarlhe
um inimigo digno de seu valor.
A sombra vai descendo da serra pelo vale e a tristeza cai da fronte sobre a
face de Jaguarê.
O jovem caçador empunha a lança de duas pontas, feita da roxa craúba, mais
rija que o ferro.
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Nenhum guerreiro brandiu jamais essa arma terrível, que sua mão primeiro
fabricou.
Lá estaca o jovem caçador no meio da campina. Volvendo ao céu o olhar
torvo e iracundo, solta ainda uma vez seu grito de guerra.
O bramido rolou pela amplidão da mata e foi morrer longe nas ca
...
ernas da
montanha.
Respondeu o ronco da sucuri na madre do rio e o urro do tigre escondido na
furna; mas outro grito de guerra não acudiu ao desafio do caçador.
Jaguarê arremessou a lança, que vibrou nos ares e foi cravar-se além no
grosso tronco da emburana.
A copa frondosa ramalhou, como as palmas do coqueiro ao sopro do vento, e
o tronco gemeu até à raiz.
O caçador repousa à sombra de sua lança.
Salta uma corça da mata e veloz atravessa a campina.
Mais veloz a persegue gentil caçadora com a seta embebida no arco flexível.
Ergue-se Jaguarê.
Seu olhar ardente voou, sôfrego de encontrar o inimigo que lhe tardava.
Avistando uma mulher, a alegria do mancebo apagou-se no rosto sombrio.
Pela faixa cor de ouro, tecida das penas do tucano, Jaguarê conheceu que
era uma filha da valente nação dos tocantins, senhora do grande rio, cujas margens
ele pisava.
A liga vermelha que cingia a perna esbelta da estrangeira dizia que nenhum
guerreiro jamais possuíra a virgem formosa.
A corça veio cair aos pés de Jaguarê, atravessada pela flecha certeira da
jovem caçadora que a seguia de perto.
A virgem reconheceu o cocar da nação que na última lua chegara aos
campos do Taari e da qual os pajés tinham dado notícia.
— Guerreiro araguaia, pois vejo pela pena vermelha de teu cocar que
pertences a essa nação valente; se pisas os campos dos tocantins como hóspede,
bem-vindo sejas; mas se vens como inimigo, foge, para que tua mãe não chore a
morte de seu filho e tenha quem a proteja na velhice.
— Virgem dos tocantins, Jaguarê já soltou seu grito de guerra. Ele pisa os
campos de teus pais como senhor. Tu és sua prisioneira. Não que vencer a corça
tímida seja glória para o caçador; mas tu chamarás o inimigo que ele espera.
— Se o veado te der a sua ligeireza, jovem guerreiro, ela não te servirá senão
para ver o rasto de meu pé antes que o vento o apague.
A linda caçadora desferiu a corrida pela imensa campina. ...
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