Livro: Americanas
Autor - Fonte: Machado de Assis
...
MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
Machado de Assis
.filha melhor do Eterno, América!
G. Dias, Timb., c. III.
POTIRA
***
.Os Tamoios, entre outras presas que fizeram, levaram esta índia, a qual
pretendeu o capitão da empresa violar: resistiu valorosamente dizendo em língua
brasílica: “Eu sou cristã e casada; não hei de fazer traição a Deus e a meu marido;
bem podes matar-me e fazer de mim o que quiserdes.” Deu-se por afrontado o
bárbaro, e em vingança lhe acabou a vida com grande crueldade.
Vasc. Chr. da Companhia de Jesus, liv 3º
2
POTIRA1
Se, poi ch’a morte il corpo le percosse,
Desse almen vita alla memoria d’ella.
ARIOSTO, Orl. Fur., c. XXIX, est. XXXI
I
Moça cristã das solidões antigas,
Em que áurea folha reviveu teu nome?
Nem o eco das matas seculares,
Nem a voz das sonoras cachoeiras,
O transmitiu aos séculos futuros.
Assim da tarde estiva às auras frouxas
Tênue fumo do colmo no ar se perde;
Nem de outra sorte em moribundos lábios
A humana voz expira. O horror e o sangue
Da miseranda cena em que, de envolta
Co’os longos, magoadíssimos suspiros,
Cristã Lucrécia, abriu tua alma o vôo
Para subir às regiões celestes,
Mal deixada memória aos homens lembra.
Isso apenas; não mais; teu nome obscuro,
Nem tua campa o brasileiro os sabe.
II
Já da férvida luta os ais e os gritos
Extintos eram. Nos baixéis ligeiros
Os tamoios incólumes embarcam;
Ferem co’os remos as serenas ondas
Até surgirem na remota aldeia.
Atrás ficava, lutuosa e triste,
A nascente cidade brasileira,2
Do inopinado assalto espavorida,
Ao céu mandando em coro inúteis vozes.
Vinha já perto rareando a noite,
Alva aurora, que à vida acorda as selvas,
Quando a aldeia surgiu aos olhos torvos
Da expedição noturna. À praia saltam
Os vencedores em tropel; transportam
Às cabanas despojos e vencidos,
E, da vigília fatigados, buscam
Na curva leve rede amigo
...
sono,
Exceto o chefe. Oh! esse não dormira
Longas noites, se a troco da vitória
Precisas fossem. Traz consigo o prêmio,
O desejado prêmio. Desmaiada
Conduz nos braços trêmulos a moça
Que renegou Tupã,3e as velhas crenças
Lavou nas águas do batismo santo.
Na rede ornada de amarelas penas
Brandamente a depõe. Leve tecido
Da cativa gentil as formas cobre;
Veste-as de mais a sombra do crepúsculo,
Sombra que a tíbia luz da alva nascente
De todo não rompeu. Inquieto sangue
3
Nas veias ferve do índio. Os olhos luzem
De concentrada raiva triunfante.
Amor talvez lhes lança um leve toque
De ternura, ou já sôfrego desejo;
Amor, como ele, aspérrimo e selvagem,
Que outro não sente o herói.
III
Herói lhe chamam
Quantos o hão visto no fervor da guerra
Medo e morte espalhar entre os contrários
E avantajar-se nos certeiros golpes
Aos mais fortes da tribo. O arco e a flecha
Desde a infância os meneia ousado e afoito;
Cedo aprendeu nas solitárias brenhas
A pleitear às feras o caminho.
A força opõe à força, a astúcia à astúcia.
Qual se da onça e da serpente houvera
Colhido as armas. Traz ao colo os dentes
Dos contrários vencidos. Nem dos anos
O número supera o das vitórias;
Tem no espaçoso rosto a flor da vida,
A juventude, e goza entre os mais belos
De real primazia. A cinta e a fronte
Azuis, vermelhas plumas alardeiam,
Ingênuas galas do gentio inculto.
IV
Da cativa gentil cerrados olhos
Não se entreabrem à luz. Morta parece.
Uma só contração lhe não perturba
A paz serena do mimoso rosto.
Junto dela, cruzados sobre o peito
Os braços, Anagê contempla e espera;
Sôfrego espera, enquanto idéias negras
Estão a revoar-lhe em torno e a encher-lhe
A mente de projetos tenebrosos.
Tal no cimo do velho Corcovado
Próxima tempestade engloba as nuvens.
Súbito ao seio túrgido e macio
Ansiosas mãos estende; inda palpita
O coração, com desusada força,
Como se a vida toda ali buscasse
Ref ...
Comentários:
Deixe aqui seu comentário sobre este livro: