Livro: Adorável Farsante Página 2

... só que aí não arranjaria comida e morreria do mesmo modo. A fome a mataria mais depressa do que os pés enegrecidos e podres. Teria que arranjar botas de qualquer jeito e naquela noite. Pela friagem do ar o inverno já estava próximo e não queria ser apanhada desprevenida. Foi andando através da noite. As ruas ficavam cada vez mais vazias e o calçamento ia se tornando melhor, se bem que sujo do mesmo jeito. Aquela altura já entrara na parte da cidade, onde moravam os ricos negociantes e a pequena nobreza, em que se conseguiam coisas melhores, porém o risco era maior. Gente rica não gostava de dividir seus bens com os necessitados. E gostava menos ainda que lhe roubassem um pouquinho das suas riquezas. No entanto, o que significava luxo para essa gente para ela significava a diferença entre a vida e a morte. Afinal, os ricos bem que podiam lhe dar um pouco do que tinham demais. Se não quisessem dar, Miriame roubaria sem remorso. Também roubaria o pão daqueles que poderiam muito bem dá-lo às pessoas em vez de tirá-lo da boca dos que eram pobres e famintos como ela. Jamais roubaria de mendigos. Esta era uma moral que ela podia aceitar e obedecer. Agasalhou-se melhor com o capote puído, num gesto de desafio do qual na realidade não se sentia assim tão capaz. Naquela parte da cidade não se atolava como acontecia no seu bairro. Ali as pessoas não andavam com os pés envoltos em trapos por falta de botas, nem usavam calças justas e que iam até os joelhos, nos quais eram amarradas com fitas, e ásperas camisas de lã que se desfariam se as lavassem. Não, os homens vestiam calças de couro, fino e macio, camisas de linho branco e usavam imensas perucas crespas e empoadas. Seus dedos eram adornados por cintilantes anéis e, o melhor de tudo, as botas eram feitas sob medida para seus pés. Ela não fazia a menor questão das jóias, porém ambicionava de corpo e alma botas como as deles. Aquelas botas de couro macio. Ah, como as invejava! Se os h ...

mens se vestiam com elegância, as mulheres eram mais elegantes ainda, observou quando duas mulheres com poses afetadas passaram numa carruagem. O valor das jóias que uma delas exibia ao redor do pescoço daria para comprar uma dúzia de pares de botas e ainda sobraria o bastante para uma lauta refeição na taverna, mesmo depois que Conrad, o receptador velhote, safado e aproveitador, houvesse tirado a exagerada parte dele. Mas não havia como se apoderar daquelas jóias. As damas eram bem protegidas por um par de lacaios forçudos e armados com porretes. Olhou-os com atenção. Mais pareciam rufiões alugados do que lacaios, com aquelas cabeças pequenas e pescoços grossos, ombros largos e mãos enormes. Miriame conhecia bem aqueles tipos: mais rápidos do que pareciam e mais impiedosos do que o diabo quando conseguiam pegar alguém. Havia pouca chance de fazer um furto rápido e fugir pela rua abaixo para se enfiar numa viela escura onde eles não a encontrassem. No entanto, aquelas jóias deveriam render um bom dinheiro. Até então jamais tinha visto nada tão valioso e fino. Conrad pagaria bem por tanta qualidade. Se conseguisse distrair a atenção dos lacaios, talvez tivesse oportunidade. Uma violenta bofetada num dos ouvidos a fez cair na realidade. Um terceiro lacaio se aproximara por trás dela e a vira olhando para as jóias com evidente cobiça. — Dá o fora daqui, seu rato sujo — resmungou o homem, brandindo o porrete em clara ameaça. — Nem pense em tentar, pois estará pendurado pelo pescoço numa corda antes que possa piscar. Com a cabeça zunindo por causa do tapa, ela conseguiu se desviar do porrete e sentiu apenas o vento que ele deslocara. O lacaio berrou impropérios enquanto Miriame despencava rua abaixo. Retribuiu com alguns xingos, virou a esquina e parou de correr. A noite mal começara e algumas senhoras bem-vestidas passavam pela rua. Mais tempo menos tempo, encontraria as botas. Nenhum filho de uma prostituta de dois cent ...

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