Livro: Caramuru poema épico do descobrimento da Bahia Página 3
Autor - Fonte: Santa Rita Durão
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E em corrupta razão mais furor cabe,
Que tanto um bruto imaginar não sabe.
XXVI
Não mui longe do mar na penha dura
A boca está de um antro mal-aberta,
Que horrível dentro pela sombra escura,
Toda é fora de ramas encoberta:
Ali com guarda à vista se clausura
A infeliz companhia, estando alerta,
E por cevá-los mais, dão-lhe o recreio
De ir pela praia em plácido passeio.
XXVII
Diogo então, que à gente miseranda,
Por ser de nobre sangue precedia,
Vendo que nada entende a turba infanda,
Nem do férreo mosquete usar sabia;
Da rota nau, que se descobre à banda,
Pólvora, e bala em cópia recolhia;
E como enfermo, que no passo tarda,
Serviu-se por bastão de uma espingarda.
XXVIII
Forte sim, mas de têmpera delicada,
Aguda febre traz desde a tormenta;
Pálido o rosto, e a cor toda mudada;
A carne sobre os ossos macilenta:
Mas foi-lhe aquela doença afortunada,
Porque a gente cruel guardá-lo intenta,
Até que sendo a si restituído,
Como os mais vão comer, seja comido.
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XXIX
Barbárie foi (se crê) da antiga idade
A própria prole devorar nascida;
Desde que essa cruel voracidade
Fora ao velho Saturno atribuída:
Fingimento por fim, mas é em verdade
Invenção do diabólico homicida,
Que uns cá se matam, e outros lá se comem:
Tanto aborrece aquela fúria ao homem.
XXX
Mas já três vezes tinha a Lua enchido
Do vasto globo o luminoso aspecto,
Quando o Chefe dos bárbaros temido
Fulmina contra os seis o atroz decreto:
Ordena que no altar seja oferecido
O brutal sacrifício em sangue infecto,
Sendo a cabeça às vítimas quebrada,
E a gula infanda de os comer saciada.
XXXI
Em tanto que se ordena a brutal festa,
Nada sabiam na marinha gruta
Os habitantes da prisão funesta;
Que ardilosa lho esconde a gente bruta:
E enquanto a feral pompa já se apresta,
Toda a pena em favor se lhe comuta;
Nem parecem ter dado a menor ordem,
Senão que comam, e, comendo engordem.
XXXII
Mimosas carnes mandam, doces frut
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s
O araçá, o caju, coco, e mangaba;
Do bom maracujá lhe enchem as grutas
Sobre rimas, e rimas de guaiaba:
Vasilhas põem de vinho nunca enxutas,
E a imunda catimpuera, que da baba
Fazer costuma a bárbara patrulha,
Que só de ouvi-lo o estômago se embrulha.
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XXXIII
Um dia pois que à sombra desejada
Se repousam, passando a calma ardente,
Por dar alívio à dor reconcentrada,
De ver-se escravos de tão fera Gente;
Fernando, um deles, diz, que aos mais agrada
Por cantigas, que entoa docemente,
Que em cítara, que o mar na terra lança,
Se divirtam da fúnebre lembrança.
XXXIV
Mancebo era Fernando mui polido,
Douto em Letras, e em prendas celebrado,
Que nas Ilhas do Atlântico nascido,
Tinha muito co’as Musas conversado:
Tinha ele os rumos do Brasil seguido,
Por ver o monumento celebrado
De uma Estátua famosa, que num pico
Aponta do Brasil ao País rico.
XXXV
Pedira-lhe Luís, que isto escutara,
Da profética Estátua o conto inteiro,
Se foi verdade, se invenção foi clara
De Gente rude, ou povo noveleiro:
Fernando então, que em metro já cantara
O sucesso, que atesta verdadeiro,
Toma nas mãos a cítara suave,
E entoando, começa em canto grave.
XXXVI
Oculto o tempo foi, incerta a era,
Em que o grão-caso contam sucedido;
Mas em parte é sem dúvida sincera
A bela História, que a escutar convido;
Félis foi o ditoso, e feliz era,
Quem tanto foi do Céu favorecido,
Pois em meio ao corrupto Gentilismo
Merecer soube a Deus o seu Batismo.
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XXXVII
Incerto pelas brenhas caminhava
Um Varão santo, que perdera a via,
Quando pelos cabelos o elevava
O Anjo, adonde o Sol já se escondia;
E um Salvagem lhe mostra, que se achava,
Quase lutando em última agonia:
Ouve (lhe diz) o justo agonizante,
E uma estrada de luz tomou brilhante.
XXXVIII
Áureo (que assim se chama o Sacro Enviado)
Encostando-se ao Velho titubante,
Por ignorar-lhe o idioma não falado,
No seu diz, de que o enfermo era ignorante:
E ...
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