Livro: Caramuru poema épico do descobrimento da Bahia Página 2
Autor - Fonte: Santa Rita Durão
...
erece-lhes um socorro fementido
Bárbara multidão, que acode ao brado:
E ao ver na praia o Benfeitor fingido,
Rende-lhe as mãos o náufrago enganado:
Tristes! que a ver algum, qual fim o espera
Com quanta sede a morte não bebera!
XIV
Já estava em terra o infausto naufragante,
Rodeado da turba Americana;
Vêm-se com pasmo; ao porem-se diante,
E uns aos outros não crêem da espécie humana:
Os cabelos, a cor, barba e semblante
Faziam crer àquela Gente insana,
Que alguma espécie de animal seria
Desses, que no seu seio o mar trazia.
XV
Algum chegando aos míseros, que a areia
O mar arroja extintos, nota o vulto;
Ora o tenta despir, e ora receia
Não seja astúcia, com que o assalte oculto.
Outros do Jacaré tomando a idéia
Temem que acorde com violento insulto;
Ou que o sono fingindo os arrebate,
E entre as presas cruéis no fundo os mate.
XVI
Mas vendo a Sancho, um náufrago que expira,
Rota a cabeça numa penha aguda,
Que ia trêmulo a erguer-se, e que caíra,
Que com voz lastimosa implora ajuda:
E vendo os olhos, que ele em branco vira;
Cadavérica a face, a boca muda,
Pela experiência da comum sorte
Reconhecem também que aquilo é morte.
5
5
XVII
Correm depois de crê-lo ao pasto horrendo;
E retalhando o corpo em mil pedaços,
Vai cada um famélico trazendo,
Qual um pé, qual a mão, qual outro os braços:
Outros da crua carne iam comendo;
Tanto na infame gula eram devassos:
Tais há, que as assam nos ardentes fossos,
Alguns torrando estão na chama os ossos.
XVIII
Que horror da Humanidade! ver tragada
Da própria espécie a carne já corrupta!
Quanto não deve a Europa abençoada
A Fé do Redentor, que humilde escuta?
Não era aquela infâmia praticada
Só dessa gente miseranda, e bruta;
Roma, e Cartago o sabe no noturno
Horrível sacrifício de Saturno.
XIX
Os sete em tanto, que do mar com vida
Chegaram a tocar na infame areia,
Pasmam de ver na turba recrescida
A brutal catadura, hórrida, e feia:
...
A cor vermelha em si, mostram tingida
De outra cor diferente, que os afeia;
Pedras, e paus de embiras enfiados,
Que na face, e nariz trazem furados.
XX
Na boca em carne humana ensangüentada
Anda o beiço inferior todo caído;
Porque a tem toda em roda esburacada,
E o labro de vis pedras embutido:
Os dentes (que é beleza que lhe agrada)
Um sobre outro desponta recrescido:
Nem se lhe vê nascer na barba o pêlo,
Chata a cara, e nariz, rijo o cabelo.
6
6
XXI
Vê-se no sexo recatado o pejo,
Sem mais que a antiga gala que Eva usava,
Quando por pena de um voraz desejo
Da feia a desnudez se envergonhava:
Vão sem pudor com bárbaro despejo
Os homens, como Adão sem culpa andava;
Mas vê-se, alma Natura, o que lhe ordenas;
Porque no sacrifício usam de penas.
XXII
Qual das belas Araras traz vistosas
Louras, brancas, purpúreas, verdes plumas:
Outros põem, como túnicas lustrosas,
Um verniz de balsâmicas escumas:
Nem temem nele as chuvas procelosas,
Nem o frio rigor de ásperas brumas;
Nem se receiam do mordaz besouro,
Qual Anta, ou qual Tatu dentro em seu couro.
XXIII
Por armas, frechas, arcos, pedras, bestas;
A espada do pau-ferro, e por escudo
As redes de algodão nada molestas,
Onde a ponta se embace ao dardo agudo:
Por capacete nas guerreiras testas
Cintos de penas com galhardo estudo;
Mas o vulgo no bélico ameaço
Não tem mais que unha ou dente, ou punho ou braço.
XXIV
Desta arte armada a multidão confusa
Investe o naufragante enfraquecido,
Que ao ver-se despojar, nada recusa;
Porque se enxugue o mádido vestido:
Tanto mais pelo mimo, que se lhe usa,
Quando a bárbara gente o vê rendido:
Trouxeram-lhe a batata, o coco, o inhame;
Mas o que crêem piedade é gula infame.
7
7
XXV
Cevavam desta forma os desditosos
Das fadigas marítimas desfeitos;
Por pingues ter os pastos horrorosos,
Sendo nas carnes míseras refeitos:
Feras! mas feras não, que mais monstruosos
São da nossa alma os bárbaros efeitos; ...
Warning: Undefined global variable $_POST in
/home4/mult6346/multiajudaromances.com.br/livro.php on line
252
Comentários:
Warning: Undefined global variable $_POST in
/home4/mult6346/multiajudaromances.com.br/livro.php on line
258
Warning: Trying to access array offset on value of type null in
/home4/mult6346/multiajudaromances.com.br/livro.php on line
258
Deixe aqui seu comentário sobre este livro: