Livro: Encher tempo
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Autor - Fonte: Machado de Assis
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...
Machado de Assis
I
A tarde era uma tarde de dezembro — trovejada como elas eram há trinta anos, quando o
céu parecia querer vir abaixo, desfeito em raios e água. O calor fora excessivo durante a
manhã toda; às duas horas, o céu começou a enegrecer, às três e meia, desfechou a
tormenta que pouca gente apanhou na rua, porque esta sagaz população fluminense,
contando com ela, houve-se de modo que estava toda recolhida na ocasião. Os que eram
sinceramente piedosos acenderam uma vela benta diante do oratório e rezaram uma
ladainha puxada pela dona da casa e respondida por toda a família; outros envolviam-se
em cobertores de lã, outros viam cair a chuva; ninguém, absolutamente ninguém andava
por fora.
Ninguém, digo mal; uma só pessoa talvez, aventurara-se a andar na rua, em tão
desabrida tarde; era um rapaz de cerca de dezoito anos com princípios de barba, alto e
amorenado, que seguia da praia da Gamboa e entrava na Rua do Livramento. Ia
embuçado num capote pardo, e tinha um guarda-chuva aberto, felizmente largo, mas que,
ainda assim, mal lhe preservava o corpo; todo o capote da cintura para baixo ia alagado;
os pés nadavam-lhe dentro de um par de sapatos de bezerro. Vencida a praia da
Gamboa, entrou o moço em uma das ruas transversais que vão dar à do Livramento; ali
teve que passar contra a corrente, um rio de água barrenta que descia, graças ao declive
do solo. Enfim, meteu-se pela Rua do Livramento, e apertando mais o passo pôde chegar
a salvo a uma casa assobradada, de três janelas, em cujo corredor entrou. Ao depois de
fechar a muito custo o guarda-chuva, pôde ouvir, nos intervalos dos trovões, as vozes da
família que cantava uma ladainha a Nossa Senhora. O moço não quis bater à porta, e
antes de acabada a reza, deixou-se ficar, no corredor, a ver cair a chuva, a ouvir os
trovões, benzendo-se, quando os relâmpagos eram mais fortes.
A trovoada daquela tarde não durou muito; trinta e cinco minutos apena
...
. Logo que
acabou, cessou dentro a reza, e o rapaz bateu à porta de mansinho. Havia escrava para
abrir a porta, mas a dona da casa veio em pessoa; — não queria saber quem era, porque
adivinhava bem quem podia ser, mas abraçar o moço e “.
O abraço foi cordial e verdadeiramente de mãe, e não menos cordial e materna foi a
repreensão que logo em seguida lhe deu.
— Entra, maluco! exclamou a sra. D. Emiliana da Purificação Mendes. Olhem em que
estado vem isto?. Deixar-se ficar na rua com semelhante tempo!. E as constipações e
as tísicas. Deus me perdoe! Mas cá está a mãe para cuidar da doença. e o dinheiro
para a botica. e os incômodos. tudo para que este senhorzinho ande por fora a trocar
as pernas, como um vadio que é. Deixa estar! eu não hei de durar sempre, hás de ver
depois o que são elas!. Por ora é muito bom cama e mesa.
— Mamãe, articulou o rapaz, deixe-me ir mudar a roupa; estou todo molhado.
— Vai, vai, troou a sra. D. Emiliana, cá tens a tua criadinha para te dar roupa lavada e
enxuta, meias para os pés, e os suadouros. Anda, pelintra! sai daqui!
Este monólogo durou ainda cerca de quinze minutos; a diferença era que, se D. Emiliana
até então falara somente, dali em diante falava e tirava a roupa dos gavetões da cômoda
e ia pôr tudo na alcova do filho, intercalando os adjetivos de censura com algumas
recomendações higiênicas, a saber, que não deixasse enxugar a roupa no corpo, que
esfregasse os pés com aguardente e não esquecesse calçar as meias de lã. Duas
mocinhas, uma de quinze, outra de dezesseis anos, e um menino de oito, ajudavam a
mãe, calados e medrosos, posto estivessem acostumados às explosões de dona Emiliana
temperadas por enfraquecimentos de ternura.
As duas trovoadas passaram de todo; e tanto o céu como o rosto de D. Emiliana voltaram
à serenidade anterior. Vestido, calçado e agasalhado, saiu da alcova o rapaz, e foi
direitinho beijar a mão da mãe, e dar-lhe um abr ...
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